Um Soneto Para Annibal
Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Luís Edmundo, Oscar Lopes, Goulart de Andrade, Leal de Souza e Martins Fontes, sete amigos de Annibal Theophilo, reuniram-se, num jantar, um ano após a morte do poeta de A Cegonha, e dia do seu aniversário, no restaurante Rio Branco.
Quiseram homenagear a sua memória dedicando-lhe um soneto. Cada um dos sete amigos faria dois versos, dentro do tema e do estilo de Annibal. “O que há de curiosos nessa criancice é não ser difícil reconhecer a autoria de cada um dos colaboradores”, diz Martins Fontes sobre a composição de Pecável.
Pecável, o soneto impecável, acrescenta Fontes, nasceu assim:
PECÁVEL!
Louco! A porta do Inferno abriste, a porta
Da desesperação e do desejo,
E dos sete pecados o cortejo
Ao mistério tartárico te transporta.
Alucinado, um supremo arquejo,
A minha voz, a retornar, te exorta,
Mas contemplando a trágica retorta,
Prestes a nela mergulhar, te vejo.
Lilith, a rir, em fúria, a face torta,
As mãos sangrando, em pérfido rastejo,
Chega-se a ti e o coração te corta.
Sucumbes. E eu te beijo. E, num lampejo,
Ressurges, porque, até depois de morta,
Reviverás no fogo do meu beijo!
Encontro Amigo
Péricles Morais, numa de suas vindas ao Sul, foi a Santos, em visita ao poeta e médico Martins Fontes. Amigos de Annibal Theophilo, em épocas e lugares distantes, encontram-se e desse encontro ressurge o saudoso amigo nas comovidas recordações.
O autor de Confidências Literárias falando de Martins Fontes, dizia: “O meu inesquecível Annibal Theophilo, quando passou pelo Amazonas, em todos os momentos que estivemos juntos, revelava-me que se afeiçoara fraternalmente, nas excentricidades de suas atitudes e nos distúrbios do seu temperamento de hiperemotivo, ao autor de Verão. O artista de A Cegonha afirmava-me que a veemência de Martins Fontes, ou melhor, o desregramento de usa emoção, não era mais do que uma forma sensual de insatisfação, decorrente de sua própria psicologia de criador dionisíaco...”
Por sua vez assim se referia Martins Fontes ao poeta, na conversa com Péricles: “- Annibal Theophilo, o meu flamifervente irmão, o nosso heróico irmão de sonhos, que tu conhecestes no Amazonas, quando ele se perdeu por aquelas paragens agrestes e mortais, e que eu idolatro ainda hoje, por toda a vida e além da morte...”
Aquele célebre soneto, Palavras de um forte, dedicado a ti, Péricles, quando de seu amargo desespero, numa enxerga de hospital, em Manaus, serve-lhe hoje de epitáfio no São Francisco Xavier: “Estou sereno em face do infinito”...
À afinidade espiritual, ao vínculo que nos ligava indissoluvelmente: o extremoso afeto que mantivemos a Coelho Neto, a Annibal Theophilo e a Raymundo Monteiro. Três nomes que lhe viviam no coração.
Péricles Morais e Martins Fontes foram sempre pródigos em louvores a Annibal Theophilo, como se pode ver nas páginas de Confidências Literárias, Nós, as Abelhas, Colar Partido, onde é transbordante a presença do poeta de A Cegonha.
A Voz Do Crítico José Oiticica
Contemporâneo de Annibal Theophilo, José Oiticica, crítico literário, professor, pesquisador da língua, dedicou a maior atenção a Annibal Theophilo e sua obra. Conheceu-o pessoalmente, sentiu-lhe a alma de perto. Sabia-o ateu, mas se convencera de que, interiormente, era tocado pelo mistério. Ao longo de famosa conferência que proferiu sobre Annibal, citou-lhe os poemas em que revela os seus diálogos com a transcendência. Essa conferência realizou-se a 19 de junho de 1918 e veio a ser publicada na Revista do Brasil.
Pela sua importância para o julgamento crítico da obra de Annibal Theophilo transcrevemo-la na íntegra. Note-se, com ressalva do estilo grandiloqüente de Oiticica, a admiração que tinha pelo poeta:
"ANNIBAL THEOPHILO
Minh’alma te aplaude! Essa é a exclamação íntima de nós todos ao lermos um bom livro, livro que nos valoriza algumas horas de existência. É um aplauso secretíssimo, adoração sem altar, sem ritos, feita na solidão esotérica do nosso eu. Estruge, em nós, uma ovação alucinada, um bater frenético de palmas como em platéia obscura onde os sentidos fossem os espectadores leais.
Esse aplauso é justiça. Para fazê-lo em plenitude de justiça importa acomodar, o mais possível, o livro à alma, à nossa alma, obter que os harmônicos desprendidos desse instrumento músico ressoem, com a justeza do seu timbre, no ressonador que somos de arte boa. Essa acomodação, porém, exige uma técnica preparatória muito mais difícil, muito mais complexa do que em geral supomos.
Ora, um livro é, para mim, o instrumento de um mundo, um microscópio ou um telescópio assestado a uma alma. É um descortinamento. É alguém que me procura e me diz: “Olha-me, ouve-me, quero confessar-me, quero mostrar-me, sê o sacerdote da minha confissão e o visitante do museu que eu sou. Vem espreitar meus dramas rudes, minhas lágrimas gloriosas; escuta a minha jeremíada e os meus epitalâmios. Comunica-te comigo para que meus arroubos de homem tenham eco, torna-te a praia das minhas ondas emotivas. Vive comigo, sim, vive comigo, um momento apenas.
E eu tomo o livro, afasto o reposteiro, sou o Alibabá desse palácio.
E como entrarei nele?
Entrarei com a indiferença do cigano que vai ler a buenadicha por dinheiro? Entrarei abruptamente, estouvadamente, como o excursionista sem consciência que tem prazo certo para as visitas do programa? Serei cúmplice da civilização mecanizada que na mesma odiosa mó tritura boas almas e almas ruins?
Não. Tomarei o livro como se apanhasse um fruto, um inseto, uma planta nunca vista. Não os examinaria com os petrechos de exame de um minério. Escolheria os meios, os processos convenientes. Cada livro bom há de ter o seu exame especial para ser entendido e julgado em plenitude de justiça. É mister fazer-se como o ator, encarnar as emoções do autor, vibrar com elas, ser ele mesmo. E isso nem sempre é fácil, ou antes é sempre dificílimo. Uma das minhas maiores dificuldades de estudo tem sido sentir Homero integralmente. Que formidável diferença entre a vida grega e a moderna!
Para sermos justos ao ler Annibal Theophilo devemos senti-lo, vive-lo. Isso requer uma condição importante: o ambiente.
Cumpre-nos criar no espírito uma situação intelectual e sentimental idêntica à do autor e então medir, nesse manômetro subjetivo o quantum de emoção nos chega a provocar.
Formaremos esse ambiente.
Antes de tudo, importa compreender que a alma de criador é sempre, nos momentos de criação, alma silenciosa e religiosa.
Esse silêncio, só é possível nas almas religiosas, religiosas, digo eu, no sentido que à religião deu Schleiermacher, isto é, “consciência imediata e viva da existência do ser finito e efêmero dentro do ser infinito e eterno; revelação do infinito no finito”.
A religião, nesse caso, é a intuição clara e simples do infinito. O homem sente, Schleiermacher, duas tendências decisivas: a de se constituir indivíduo, manter-se indivíduo, reproduzir-se em indivíduo, e a de participar de todo, aliar-se ao todo, dar-se ao todo. A conformação desse sentimento às ações: eis a religião e a moral. A expressão dessa conformidade, acrescento eu, eis a arte.
Nessa religião viva, o silêncio é o grande templo; e, vice-versa, o silêncio produtivo só se encontra nessa religião.
A doutrina de Schleiermacher satisfaz ao mesmo tempo o espírito religioso e o espírito artístico; irmana-se.
Eis porque Annibal, ateu, era um espírito essencialmente religioso.
Denota-o o soneto “Palavras de um Forte”:
A Pércicles Morais
Sobre meu ser, neste momento augusto,
A asa da Sombra, lenta e fria, passa.
Indiferente, sinto-me robusto
Ante a brusca surpresa da desgraça.
De castigos futuros não me assusto;
Crença no Além que um semideus me faça
Não sigo; um grande amor me fez um justo
E de esperanças esgotei a taça.
Caio obscuro na luta. Armas deponho
Sem o pavor que gela frágeis peitos,
Sem apoio na luz em que me agito.
Mas que importa! Ouço em mim cantando o Sonho,
Arde-me à fronte a auréola dos Eleitos,
E estou sereno em face do Infinito.
Serenidade em face do Infinito! Eis o grande característico das almas profundamente religiosas.
Os espantalhos das seitas perturbam essa serenidade, amedrontam os espíritos que não se atrevem, por fim, ao colóquio temível das estrelas. Para ser sereno em face do Infinito é mister subir a ele. Essa ascensão da alma é exaltação.
O primeiro dom do artista é ser exaltado. Figurai um cofre de ouro no topo de um alcáçar e no cofre pérolas e pedras raras. Dai uma chave de ouro a alguém, mandai buscar as pedras. Não há dificuldade em tomar a chave, torcer a fechadura, puxar a porta. A dificuldade está no galgar a torre. A arte não se alcança pelo estudo, pela técnica, pela prática, senão houver no cérebro que pensa o arrojo de subir. Arte é exaltação íntima do ser consciente.
Nietzsche divide os escritores em duas classes: os exaltadores de pensamentos e os exaltados pelos pensamentos. Os primeiros catam na vulgaridade pensamentos comuns, vestem-nos, emplumam-nos, decoram-nos, exaltam-nos com os artifícios da arte e o talento das encenações; armam guindastes e elevadores para alçar idéias, ensinam como se sobe, mas não sobem. Os segundos apresentam pensamentos nus, belos da sua beleza de originalidade, eloqüentes de sua eloqüência de verdade e sugestão.
A diferença está, profundamente, na qualidade das almas. A palavra exaltação explica, por si mesma, a diferença. Pertence à grande família da raiz latina al que significa alimentar. Exaltação é nutrição. Almas exaltadas são almas nutridas e a consciência vital da nutrição é a expansão tumultuosa, expansão das fontes depois das chuvas.
Nietzche esqueceu-se todavia dos extáticos. Não confundamos exaltação e êxtase.
Exaltação é a seiva ascendente, turbilhonamento de idéias e de imagens que vão viver. A alma exaltada anseia, quer falar, quer declamar, visa um fim, é um Jasão alucinado, mas não se desprende dos seus mananciais orgânicos, da sua condição humana e terrena.
Êxtase é transporte, criação artificial de um céu para onde a alma voa, desterrada na contemplação inativa do seu sonho. Êxtase é beatitude, a monotonia da paz, o tédio posterior à conquista. É o egoísmo das almas místicas ou narcotizadas na auto-hipnose da soberba excessiva. É a faquirização do gênio.
Eis por que o extático é incapaz de transmitir-nos sua emoção estéril. Imobiliza-se na sua hibernação mental, não se alimenta, vive de reservas nutritivas, sem vicejar nem dar frutos.
Os artistas reais, os criadores de beleza, os transmissores de visões não são extáticos, são exaltados.
Annibal Theophilo era um exaltado. Primava, na vida real e na arte, pela sinceridade. Subia à contemplação serena do universo; mas, pela exaltação, se conservava humano. Era incapaz de um êxtase, era alma por demais nutrida em força orgânica e que declarava os seus martírios para se comunicar com a dor alheia, consolar-se nela e consola-la. Vede essa exaltação poética no soneto Angelus:
ANGELUS
A Calixto Cordeiro
Tarde. Nenhuma viração. Poente
Rubro. Adormece a alma das coisas langue.
Tranqüilo o azul deserto. Abafa o ambiente.
No Leste, assoma a lua cheia exangue,
Tarda, a face do mar desliza enchente,
Trêmula, refletindo o Ocaso e o mangue,
E nela, aos olhos, é confusamente
Tudo esmeraldas, pérolas e sangue.
Lenta, voga uma barca. Suave, o canto
Da cigarra amortece. Ao longe um sino
Plange dolente... E, em mádido quebranto
Eu, sonhador da Glória e da Alegria,
Leio o poema sem luz do meu destino
Na imensa mágoa do morrer do dia.
Annibal Theophilo me disse várias vezes ser este o seu melhor soneto. Recitava-o seriamente comovido e ninguém poderá negar a essa obra-prima todas as qualidades e todas as intensidades da emoção. Poder descritivo, doloroso paralelo entre a agonia da tarde e a tristeza fatal do poeta, sente-se no pequeno quadro a exaltação de uma alma religiosa mas desenganada. Vereis depois a razão do desengano.
Documentamos agora, apenas, todos os tons dessa exaltação.
Ela se pode bem compreender quando surpreendemos o espírito em contacto com o mistério das coisas.
Deveis ter experimentado esse pavor súbito que senti muitas vezes dentro da mata, quando ia, em menino, de alçapão em punho, atrás de patativas, sanhaços e curiós. Refiro-me ao pavor do desconhecido, ao pavor de quem se perde na floresta e se vê, sozinho, no silêncio ininterrogável dos troncos e das furnas.
Esse horrível calefrio sente-o o poeta verdadeiro. Sentiu-o Annibal Theophilo neste vilancete simplíssimo, intitulado “Diante do Enigma”:
DIANTE DO ENIGMA
A Gregório Fonseca
De onde vim eu para o Mundo,
Para onde vou, a que vim
Que não sei nada de mim?
Sobre o mistério profundo
De origem vivo a cismar
Sem conseguir decifrar
De onde vim eu para o Mundo.
Entro, olho, sondo, aprofundo,
E inquiro ao que vejo e a mim:
- Para onde vou? A que vim? -
Corro em pensamento o espaço
Estudo a Alegria, a flor,
O sonho, o pássaro, a Dor,
O universo traço a traço,
E em vão tanto esforço faço...
Sinto que estou como vim
Que não sei nada de mim
De tudo que a Natureza
Muda e eterna ostenta a luz,
De quanto a Ciência deduz
Só tenho certa a incerteza
Do que ora sou. Que surpresa
Pois, é a que me espera a mim
Para onde vou? A que vim?
Para aprazer que Vontade,
Por irrisão de que Ser,
Olvido de que Poder,
Força de que Potestade
Estou nesta soledade?
Por que e para que vim
Que não sei nada de mim?
Diríeis ouvir Hamlet no seu monólogo. Nesses versos há exaltação e religião. Ora, o espírito exaltado e religioso cria. Cria por prazer e faz do seu prazer missão, porque de todos os gozos do mundo o mais intenso e mais são é o gozo de criar.
Respondendo às inventivas de Baldad o desgraçado Job, depois de assomos de revolta, brada esperançoso: “Sei que meu redentor vive... Verei meu Deus em minha carne – in carne mea videbo Deus meum”. Ver Deus em si mesmo, senti-lo em sua carne, eis o prazer supremo, a reparadora recompensa das torturas já sofridas.
A delícia do Job amargurado é a delícia espiritual do artista criador. Ele sente Deus em si; sente-se Deus. Compreende que no caos da Beleza houve uma corporificação inédita que suas mãos fizeram. Tirou do nada a forma nova, deu-lhe vida, imprimiu-lhe a sua efígie intelectual e moral, nela imortalizou-se, glorificou-se, divinizou-se.
Esse deleite paradisíaco deve tê-lo provado Annibal Theophilo, com veemência, ao tirar do inexistente aquela obra prima chamada A Cegonha.
Sintamos como ele esse intenso abalo emotivo analisando essa composição, vendo como nasceu, como surgiu, como se integrou em sua forma definitiva.
A idéia fundamental (contou-me o próprio Annibal) voejou-lhe no cérebro dez anos. Dez anos o tentou, cantou-lhe na alma, cintilou na torre de cristal de onde a inspiração derrama fluidez. O poeta nunca se atrevera a pô-la em verso. Assustava-o a dificuldade da empresa, o medo de estragar a concepção, de não poder molda-la na apertura de um soneto. Porque, é intuitivo, para aquela idéia, só o soneto. Qualquer outro molde arruiná-la-ia irremediavelmente. Ora, o soneto exige a absoluta condensação e a absoluta perfeição. Ainda nos seus últimos dias Annibal se irritava com o primeiro terceto que não reputava digno das demais partes.
Foi num clube literário do Rio que o poeta leu, pela primeira vez, o seu soneto, premiado em concurso. O desejo de apresentar-se ao tal concurso foi realmente o móvel que decidiu Annibal a escrever A Cegonha:
Releiamos esse primor:
Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Luís Edmundo, Oscar Lopes, Goulart de Andrade, Leal de Souza e Martins Fontes, sete amigos de Annibal Theophilo, reuniram-se, num jantar, um ano após a morte do poeta de A Cegonha, e dia do seu aniversário, no restaurante Rio Branco.
Quiseram homenagear a sua memória dedicando-lhe um soneto. Cada um dos sete amigos faria dois versos, dentro do tema e do estilo de Annibal. “O que há de curiosos nessa criancice é não ser difícil reconhecer a autoria de cada um dos colaboradores”, diz Martins Fontes sobre a composição de Pecável.
Pecável, o soneto impecável, acrescenta Fontes, nasceu assim:
PECÁVEL!
Louco! A porta do Inferno abriste, a porta
Da desesperação e do desejo,
E dos sete pecados o cortejo
Ao mistério tartárico te transporta.
Alucinado, um supremo arquejo,
A minha voz, a retornar, te exorta,
Mas contemplando a trágica retorta,
Prestes a nela mergulhar, te vejo.
Lilith, a rir, em fúria, a face torta,
As mãos sangrando, em pérfido rastejo,
Chega-se a ti e o coração te corta.
Sucumbes. E eu te beijo. E, num lampejo,
Ressurges, porque, até depois de morta,
Reviverás no fogo do meu beijo!
Encontro Amigo
Péricles Morais, numa de suas vindas ao Sul, foi a Santos, em visita ao poeta e médico Martins Fontes. Amigos de Annibal Theophilo, em épocas e lugares distantes, encontram-se e desse encontro ressurge o saudoso amigo nas comovidas recordações.
O autor de Confidências Literárias falando de Martins Fontes, dizia: “O meu inesquecível Annibal Theophilo, quando passou pelo Amazonas, em todos os momentos que estivemos juntos, revelava-me que se afeiçoara fraternalmente, nas excentricidades de suas atitudes e nos distúrbios do seu temperamento de hiperemotivo, ao autor de Verão. O artista de A Cegonha afirmava-me que a veemência de Martins Fontes, ou melhor, o desregramento de usa emoção, não era mais do que uma forma sensual de insatisfação, decorrente de sua própria psicologia de criador dionisíaco...”
Por sua vez assim se referia Martins Fontes ao poeta, na conversa com Péricles: “- Annibal Theophilo, o meu flamifervente irmão, o nosso heróico irmão de sonhos, que tu conhecestes no Amazonas, quando ele se perdeu por aquelas paragens agrestes e mortais, e que eu idolatro ainda hoje, por toda a vida e além da morte...”
Aquele célebre soneto, Palavras de um forte, dedicado a ti, Péricles, quando de seu amargo desespero, numa enxerga de hospital, em Manaus, serve-lhe hoje de epitáfio no São Francisco Xavier: “Estou sereno em face do infinito”...
À afinidade espiritual, ao vínculo que nos ligava indissoluvelmente: o extremoso afeto que mantivemos a Coelho Neto, a Annibal Theophilo e a Raymundo Monteiro. Três nomes que lhe viviam no coração.
Péricles Morais e Martins Fontes foram sempre pródigos em louvores a Annibal Theophilo, como se pode ver nas páginas de Confidências Literárias, Nós, as Abelhas, Colar Partido, onde é transbordante a presença do poeta de A Cegonha.
A Voz Do Crítico José Oiticica
Contemporâneo de Annibal Theophilo, José Oiticica, crítico literário, professor, pesquisador da língua, dedicou a maior atenção a Annibal Theophilo e sua obra. Conheceu-o pessoalmente, sentiu-lhe a alma de perto. Sabia-o ateu, mas se convencera de que, interiormente, era tocado pelo mistério. Ao longo de famosa conferência que proferiu sobre Annibal, citou-lhe os poemas em que revela os seus diálogos com a transcendência. Essa conferência realizou-se a 19 de junho de 1918 e veio a ser publicada na Revista do Brasil.
Pela sua importância para o julgamento crítico da obra de Annibal Theophilo transcrevemo-la na íntegra. Note-se, com ressalva do estilo grandiloqüente de Oiticica, a admiração que tinha pelo poeta:
"ANNIBAL THEOPHILO
Minh’alma te aplaude! Essa é a exclamação íntima de nós todos ao lermos um bom livro, livro que nos valoriza algumas horas de existência. É um aplauso secretíssimo, adoração sem altar, sem ritos, feita na solidão esotérica do nosso eu. Estruge, em nós, uma ovação alucinada, um bater frenético de palmas como em platéia obscura onde os sentidos fossem os espectadores leais.
Esse aplauso é justiça. Para fazê-lo em plenitude de justiça importa acomodar, o mais possível, o livro à alma, à nossa alma, obter que os harmônicos desprendidos desse instrumento músico ressoem, com a justeza do seu timbre, no ressonador que somos de arte boa. Essa acomodação, porém, exige uma técnica preparatória muito mais difícil, muito mais complexa do que em geral supomos.
Ora, um livro é, para mim, o instrumento de um mundo, um microscópio ou um telescópio assestado a uma alma. É um descortinamento. É alguém que me procura e me diz: “Olha-me, ouve-me, quero confessar-me, quero mostrar-me, sê o sacerdote da minha confissão e o visitante do museu que eu sou. Vem espreitar meus dramas rudes, minhas lágrimas gloriosas; escuta a minha jeremíada e os meus epitalâmios. Comunica-te comigo para que meus arroubos de homem tenham eco, torna-te a praia das minhas ondas emotivas. Vive comigo, sim, vive comigo, um momento apenas.
E eu tomo o livro, afasto o reposteiro, sou o Alibabá desse palácio.
E como entrarei nele?
Entrarei com a indiferença do cigano que vai ler a buenadicha por dinheiro? Entrarei abruptamente, estouvadamente, como o excursionista sem consciência que tem prazo certo para as visitas do programa? Serei cúmplice da civilização mecanizada que na mesma odiosa mó tritura boas almas e almas ruins?
Não. Tomarei o livro como se apanhasse um fruto, um inseto, uma planta nunca vista. Não os examinaria com os petrechos de exame de um minério. Escolheria os meios, os processos convenientes. Cada livro bom há de ter o seu exame especial para ser entendido e julgado em plenitude de justiça. É mister fazer-se como o ator, encarnar as emoções do autor, vibrar com elas, ser ele mesmo. E isso nem sempre é fácil, ou antes é sempre dificílimo. Uma das minhas maiores dificuldades de estudo tem sido sentir Homero integralmente. Que formidável diferença entre a vida grega e a moderna!
Para sermos justos ao ler Annibal Theophilo devemos senti-lo, vive-lo. Isso requer uma condição importante: o ambiente.
Cumpre-nos criar no espírito uma situação intelectual e sentimental idêntica à do autor e então medir, nesse manômetro subjetivo o quantum de emoção nos chega a provocar.
Formaremos esse ambiente.
Antes de tudo, importa compreender que a alma de criador é sempre, nos momentos de criação, alma silenciosa e religiosa.
Esse silêncio, só é possível nas almas religiosas, religiosas, digo eu, no sentido que à religião deu Schleiermacher, isto é, “consciência imediata e viva da existência do ser finito e efêmero dentro do ser infinito e eterno; revelação do infinito no finito”.
A religião, nesse caso, é a intuição clara e simples do infinito. O homem sente, Schleiermacher, duas tendências decisivas: a de se constituir indivíduo, manter-se indivíduo, reproduzir-se em indivíduo, e a de participar de todo, aliar-se ao todo, dar-se ao todo. A conformação desse sentimento às ações: eis a religião e a moral. A expressão dessa conformidade, acrescento eu, eis a arte.
Nessa religião viva, o silêncio é o grande templo; e, vice-versa, o silêncio produtivo só se encontra nessa religião.
A doutrina de Schleiermacher satisfaz ao mesmo tempo o espírito religioso e o espírito artístico; irmana-se.
Eis porque Annibal, ateu, era um espírito essencialmente religioso.
Denota-o o soneto “Palavras de um Forte”:
A Pércicles Morais
Sobre meu ser, neste momento augusto,
A asa da Sombra, lenta e fria, passa.
Indiferente, sinto-me robusto
Ante a brusca surpresa da desgraça.
De castigos futuros não me assusto;
Crença no Além que um semideus me faça
Não sigo; um grande amor me fez um justo
E de esperanças esgotei a taça.
Caio obscuro na luta. Armas deponho
Sem o pavor que gela frágeis peitos,
Sem apoio na luz em que me agito.
Mas que importa! Ouço em mim cantando o Sonho,
Arde-me à fronte a auréola dos Eleitos,
E estou sereno em face do Infinito.
Serenidade em face do Infinito! Eis o grande característico das almas profundamente religiosas.
Os espantalhos das seitas perturbam essa serenidade, amedrontam os espíritos que não se atrevem, por fim, ao colóquio temível das estrelas. Para ser sereno em face do Infinito é mister subir a ele. Essa ascensão da alma é exaltação.
O primeiro dom do artista é ser exaltado. Figurai um cofre de ouro no topo de um alcáçar e no cofre pérolas e pedras raras. Dai uma chave de ouro a alguém, mandai buscar as pedras. Não há dificuldade em tomar a chave, torcer a fechadura, puxar a porta. A dificuldade está no galgar a torre. A arte não se alcança pelo estudo, pela técnica, pela prática, senão houver no cérebro que pensa o arrojo de subir. Arte é exaltação íntima do ser consciente.
Nietzsche divide os escritores em duas classes: os exaltadores de pensamentos e os exaltados pelos pensamentos. Os primeiros catam na vulgaridade pensamentos comuns, vestem-nos, emplumam-nos, decoram-nos, exaltam-nos com os artifícios da arte e o talento das encenações; armam guindastes e elevadores para alçar idéias, ensinam como se sobe, mas não sobem. Os segundos apresentam pensamentos nus, belos da sua beleza de originalidade, eloqüentes de sua eloqüência de verdade e sugestão.
A diferença está, profundamente, na qualidade das almas. A palavra exaltação explica, por si mesma, a diferença. Pertence à grande família da raiz latina al que significa alimentar. Exaltação é nutrição. Almas exaltadas são almas nutridas e a consciência vital da nutrição é a expansão tumultuosa, expansão das fontes depois das chuvas.
Nietzche esqueceu-se todavia dos extáticos. Não confundamos exaltação e êxtase.
Exaltação é a seiva ascendente, turbilhonamento de idéias e de imagens que vão viver. A alma exaltada anseia, quer falar, quer declamar, visa um fim, é um Jasão alucinado, mas não se desprende dos seus mananciais orgânicos, da sua condição humana e terrena.
Êxtase é transporte, criação artificial de um céu para onde a alma voa, desterrada na contemplação inativa do seu sonho. Êxtase é beatitude, a monotonia da paz, o tédio posterior à conquista. É o egoísmo das almas místicas ou narcotizadas na auto-hipnose da soberba excessiva. É a faquirização do gênio.
Eis por que o extático é incapaz de transmitir-nos sua emoção estéril. Imobiliza-se na sua hibernação mental, não se alimenta, vive de reservas nutritivas, sem vicejar nem dar frutos.
Os artistas reais, os criadores de beleza, os transmissores de visões não são extáticos, são exaltados.
Annibal Theophilo era um exaltado. Primava, na vida real e na arte, pela sinceridade. Subia à contemplação serena do universo; mas, pela exaltação, se conservava humano. Era incapaz de um êxtase, era alma por demais nutrida em força orgânica e que declarava os seus martírios para se comunicar com a dor alheia, consolar-se nela e consola-la. Vede essa exaltação poética no soneto Angelus:
ANGELUS
A Calixto Cordeiro
Tarde. Nenhuma viração. Poente
Rubro. Adormece a alma das coisas langue.
Tranqüilo o azul deserto. Abafa o ambiente.
No Leste, assoma a lua cheia exangue,
Tarda, a face do mar desliza enchente,
Trêmula, refletindo o Ocaso e o mangue,
E nela, aos olhos, é confusamente
Tudo esmeraldas, pérolas e sangue.
Lenta, voga uma barca. Suave, o canto
Da cigarra amortece. Ao longe um sino
Plange dolente... E, em mádido quebranto
Eu, sonhador da Glória e da Alegria,
Leio o poema sem luz do meu destino
Na imensa mágoa do morrer do dia.
Annibal Theophilo me disse várias vezes ser este o seu melhor soneto. Recitava-o seriamente comovido e ninguém poderá negar a essa obra-prima todas as qualidades e todas as intensidades da emoção. Poder descritivo, doloroso paralelo entre a agonia da tarde e a tristeza fatal do poeta, sente-se no pequeno quadro a exaltação de uma alma religiosa mas desenganada. Vereis depois a razão do desengano.
Documentamos agora, apenas, todos os tons dessa exaltação.
Ela se pode bem compreender quando surpreendemos o espírito em contacto com o mistério das coisas.
Deveis ter experimentado esse pavor súbito que senti muitas vezes dentro da mata, quando ia, em menino, de alçapão em punho, atrás de patativas, sanhaços e curiós. Refiro-me ao pavor do desconhecido, ao pavor de quem se perde na floresta e se vê, sozinho, no silêncio ininterrogável dos troncos e das furnas.
Esse horrível calefrio sente-o o poeta verdadeiro. Sentiu-o Annibal Theophilo neste vilancete simplíssimo, intitulado “Diante do Enigma”:
DIANTE DO ENIGMA
A Gregório Fonseca
De onde vim eu para o Mundo,
Para onde vou, a que vim
Que não sei nada de mim?
Sobre o mistério profundo
De origem vivo a cismar
Sem conseguir decifrar
De onde vim eu para o Mundo.
Entro, olho, sondo, aprofundo,
E inquiro ao que vejo e a mim:
- Para onde vou? A que vim? -
Corro em pensamento o espaço
Estudo a Alegria, a flor,
O sonho, o pássaro, a Dor,
O universo traço a traço,
E em vão tanto esforço faço...
Sinto que estou como vim
Que não sei nada de mim
De tudo que a Natureza
Muda e eterna ostenta a luz,
De quanto a Ciência deduz
Só tenho certa a incerteza
Do que ora sou. Que surpresa
Pois, é a que me espera a mim
Para onde vou? A que vim?
Para aprazer que Vontade,
Por irrisão de que Ser,
Olvido de que Poder,
Força de que Potestade
Estou nesta soledade?
Por que e para que vim
Que não sei nada de mim?
Diríeis ouvir Hamlet no seu monólogo. Nesses versos há exaltação e religião. Ora, o espírito exaltado e religioso cria. Cria por prazer e faz do seu prazer missão, porque de todos os gozos do mundo o mais intenso e mais são é o gozo de criar.
Respondendo às inventivas de Baldad o desgraçado Job, depois de assomos de revolta, brada esperançoso: “Sei que meu redentor vive... Verei meu Deus em minha carne – in carne mea videbo Deus meum”. Ver Deus em si mesmo, senti-lo em sua carne, eis o prazer supremo, a reparadora recompensa das torturas já sofridas.
A delícia do Job amargurado é a delícia espiritual do artista criador. Ele sente Deus em si; sente-se Deus. Compreende que no caos da Beleza houve uma corporificação inédita que suas mãos fizeram. Tirou do nada a forma nova, deu-lhe vida, imprimiu-lhe a sua efígie intelectual e moral, nela imortalizou-se, glorificou-se, divinizou-se.
Esse deleite paradisíaco deve tê-lo provado Annibal Theophilo, com veemência, ao tirar do inexistente aquela obra prima chamada A Cegonha.
Sintamos como ele esse intenso abalo emotivo analisando essa composição, vendo como nasceu, como surgiu, como se integrou em sua forma definitiva.
A idéia fundamental (contou-me o próprio Annibal) voejou-lhe no cérebro dez anos. Dez anos o tentou, cantou-lhe na alma, cintilou na torre de cristal de onde a inspiração derrama fluidez. O poeta nunca se atrevera a pô-la em verso. Assustava-o a dificuldade da empresa, o medo de estragar a concepção, de não poder molda-la na apertura de um soneto. Porque, é intuitivo, para aquela idéia, só o soneto. Qualquer outro molde arruiná-la-ia irremediavelmente. Ora, o soneto exige a absoluta condensação e a absoluta perfeição. Ainda nos seus últimos dias Annibal se irritava com o primeiro terceto que não reputava digno das demais partes.
Foi num clube literário do Rio que o poeta leu, pela primeira vez, o seu soneto, premiado em concurso. O desejo de apresentar-se ao tal concurso foi realmente o móvel que decidiu Annibal a escrever A Cegonha:
Releiamos esse primor:
Antes de tudo, o soneto é feito de contrastes. À inalterável serenidade de alma dos quartetos opõem-se as incontidas ânsias dos tercetos. À simplicidade ingênua do conceito da dama a quem se afigura a cegonha um conde encantado, contrapõe-se a visão do poeta que nela vê a encarnação da Dúvida. Os dois símiles são admiráveis de precisão e emoção. O soneto é composto com uma perspectiva cênica, um equilíbrio, uma meia-tinta e um sentido de gradação só existente nos grandes técnicos da Arte.
Primeiro, a paisagem dentro da qual se ergue a cegonha triste; é um fim de ocaso, há um lago azul, cheio de sombras, e à beira da água o perfil pensativo da pernalta. O poeta e a dama contemplam aquela cena. Que pensará ela? Sonha talvez, diz-lhe o poeta, que um conde antigo existe ali, mudado em pássaro por alguma varinha de condão. Notai o valor estético desse talvez. Aumenta a ingenuidade fundamental sobrepondo-lhe uma ingenuidade maliciosa, dolorosa mesmo, do poeta. Todo um mundo velho, a irrequieta quadra fetichista dos solares, das fadas, dos encantamentos, todo cavalheirismo de condes e castelos nos sugerem esses versos primorosos. E, de repente, o espírito alongado a antigas lendas, volvido às afastadas épocas dos sonhos, torna à contemplação aflitiva da pernalta embevecida e só. Ela resume inaudita tristeza de um passado agitadíssimo e extinto. É a imobilidade cataléptica de uma alma debruçada sobre as ruinarias de uma civilização. Nessa paz externa se erige então a figura transtornada do poeta. É toda enlevo e agitação; quer a Luz, a Verdade oculta, as surpresas do Segredo. Sua preocupação diuturna é a subida ao rochedo ruvinhoso dentro de cujo cofre deva achar-se o diamante mágico. Absorto, assim, na sua obsessão de sonho, o poeta, ao ver a ave, adivinha nela o seu próprio símbolo; ela representa a estátua interior que domina o jardim do seu espírito. Ela é bem a sua dúvida. ... Dúvida humana debruçada Sobre a angústia infinita de si mesma. |
Para contemplar o ambiente e ver o livro, determinemos os característicos humanos da alma do poeta; classifiquemos essa alma. Percebo o lucilar de olhos com que vos indignais desta proposição: classificar uma alma como se pudéssemos rotular, como em ciências naturais, seres supernaturais. Enquadrar almas em chaves garriformes não será talvez o suprassumo da presunção retórica?
E eu vos respondo – não. Classificar é descobrir o caráter essencial de um ser, aquele que lhe explica a profunda origem, a razão de ser da sua vida e dos seus atos. O classificador relega o acessório, os sinais extrínsecos e surpreende num rincão moral, como numa anomalia morfológica, o segredo de um destino.
Ora, para mim, Annibal Theophilo é um anômalo no tempo, um deslocado na história, a reaparição de um tipo morto. Provém de uma sociedade incompreensível para nós. Aparece-nos, no livro, como egresso de outra terra, com tendências outras, outros ímpetos, fluxos inesperados ou paradoxais.
Era, em tudo, medieval. Confessa-o abertamente no soneto Ruínas:
E eu vos respondo – não. Classificar é descobrir o caráter essencial de um ser, aquele que lhe explica a profunda origem, a razão de ser da sua vida e dos seus atos. O classificador relega o acessório, os sinais extrínsecos e surpreende num rincão moral, como numa anomalia morfológica, o segredo de um destino.
Ora, para mim, Annibal Theophilo é um anômalo no tempo, um deslocado na história, a reaparição de um tipo morto. Provém de uma sociedade incompreensível para nós. Aparece-nos, no livro, como egresso de outra terra, com tendências outras, outros ímpetos, fluxos inesperados ou paradoxais.
Era, em tudo, medieval. Confessa-o abertamente no soneto Ruínas:
A Aarão Dória
Vêde: torres em ruínas solitárias Outrora testemunhas de áureos dias Hoje morada de melancolias, De verde musgo e de aves sanguinárias. Vendo-as contemplo, absorto em visionárias Cismas, torneios, justas, correrias, Serenatas, duelos e sombrias Batalhas a arma branca, tumultuárias. Sonho entrever, à noite, as almenaras, Entr’escutar o alerta dos vedetas, Entregozar medievas primaveras. E como, ao luar dessas lembranças caras, Sinto a expressão, naquelas pedras pretas, De uma saudade eterna de outras eras. |
A saudade, visivelmente, não é das pedras, mas dele poeta. Ao ver as ruínas recompunha, em si mesmo, os tempos de agitação, bulício, heroísmo a que se amoldavam bem seu gosto e seu temperamento.
Provam-no os episódios de sua vida e seu livro. São rasgos de aventuras, fúrias e desafios, alardes de coragem, requintes de galanteios e audácia. Contou-me um dia que, em certo museu do Norte, vendo uma armadura antiga, não se teve que a não vestisse para sentir-se batalhador avoengo. Pasmava da extraordinária força de homens que pelejavam desafogadamente sob tal peso e com tais armas. Para o poeta a sociedade ideal seria a corte do rei Arthur entre os cavaleiros da Table Ronde. Encontraria lá
...torneios, justas, correrias,
Serenatas, duelos e sombrias
Batalhas a arma branca, tumultuárias.
Assistiria em Cardigan, na floresta de Broceliande, à caçada do veado branco proposta pelo rei aos cavaleiros seus amigos. O prêmio ao preador da caça rara consistia em dar um beijo na boca da mais formosa dama, á escolha, entre as da corte.
Era fatal a conseqüência. Nenhum dos cavaleiros suportava a afronta de declarar alguém que sua dama não era a mais formosa. E principiava o certame estridoroso.
Em pleno século XIV, Annibal Theophilo seria um Carlos Zeno, de que as gestas venezianas cantam maravilhas.
Podemos afirmar que a Idade Média foi a época da reza. Nunca os europeus rezaram tanto. Era das igrejas, dos conventos, das devoções, dos santos, dos te-deums, das missas, dos sacramentos, das benzeduras, dos responsos, das ladainhas, das promessas, nela a oração iniciava os atos menos graves, penetrava as horas todas, repetia-se regularmente ao despertar , ao recolher, às refeições, ao por do sol, nos passeios, na meditação, no ócio e na luta. A igreja era um sindicato intercessor cujas taxas eram preces. Annibal, o ateu Annibal, deliciou-se na suavidade desse religiosismo ingênuo e cultuando a sua amada, o seu ídolo-mulher, compôs quatro orações a sua senhora, a sua Virgem Sacratíssima, das quais recitarei a mais curta:
Ave Senhora da minha vida
Meu pensamento vive por vós:
Entre as Perfeitas sois a escolhida
Alto é o Afeto que brilha em nós.
Celeste ramo de eternas flores,
Anjo da Guarda de ânimo forte,
Volvei os Olhos às minhas dores,
Supremo Bem.
Agora e na hora da minha morte
Amém!
No estilo de Annibal há muito de antigo e algo de novo. Não é raro ver em literatura um regresso ás formas velhas, arcaização do pensamento ou da expressão.
... Porque Annibal não é um novo que se veste à antiga; é um troveiro ressurgido que fala como nós. Nele a essência, o de índole, o de cerne é a cavalaria, a Idade Média. Era arcaico de nascença. Era o século XI ou XII reencarnado em nosso século, civilizadíssimo para o seu ânimo de campeador.
Quanto mais lhe sondo o estilo, mais lhe apuro a espontaneidade. Annibal não copiou Camões ou os trovadores. Era inatamente trovador e camoniano. Nele o não ele é o que aparece novo, os modos de dizer da sua geração. Nesse temperamento o amor há de forçosamente ser medievo. Chamo-lhe medievo na acepção mais alta que lhe deram as Cours d’Amour francesas. O código do rei Arthur que um cavaleiro conquistara ao falcão do rei pousado num poleiro de ouro, decretava no artigo IX: Amare nemo potest, nisi qui amoris suasione compellitur. Ninguém pode amar verdadeiramente senão fascinado pelo amor. Amar sinceramente é uma vocação da vida que nos chama a perpetuá-la. Só o amor-apelo é digno. O tribunal das damas condenava sem misericórdia o amor-negócio, o amor-política. Para amar cavalheirescamente era mister impregnar o corpo, os nervos, a razão, todo o ser físico e mental na imagem feminina eleita. Cumpria, segundo o artigo 26, executar todos os atos com o pensamento em sua dama. Amor nobre, amor-destino era aquele envenenamento, aquele mal que invoca um trovador de cancioneiro de Montpellier:
Mal d’amors, prenés m’amie
Mal d’amors, prenés la moi
Prenés le je vos en prie
Et mequier en foi
(Raynaud – Recueil de motets français – I, 141)
Tal peçonha intoxicou Annibal.
Toda a sua vida foi um silente, doloroso lamento de saudade, um marejar os olhos d’água continuamente. Medieval legítimo escolheu a sua dama, desapoderadamente amou-a, amou-a com a loucura, a pertinácia, a doença de Florendos amando Miraguarda. Pouco antes de morrer manifestava-se comovido as torturas desse desengano, desse amor frustrado que lhe ensombra os versos com desesperos e revoltas. A maior parte do seu livro é a celebração perpetuo carmine desse tresloucamento. Paixão sincera, elevadíssima e pura. Imposições e conveniências arrancaram-lhe a Dulcinéia transferindo-a a mãos impuras e imeritórias. O fanático viu a sua santa conspurcada por sacrilégios. Houve alguém que lhe entrou no templo, violou o altar, desnichou a imagem venerada e vendeu-a infandamente.
Calculai, senhores, as borrascas desse espírito, desse Palmeirim retardatário ao ver sua Polinarda entregue a mãos de turcos. Avaliai, vós mesmos, os sem limites dessa crueldade e abri depois o livro. Tereis formado, em vós, aquele ambiente interno que eu vos apontei como indispensável à compreensão do poeta. Vereis o que é um sonho perturbado, o que é despertar alguém para o pesadelo. Então, gemendo, esses versos se movimentarão aos vossos olhos, pulsará sangue nessas veias, faiscará verdade e realidade nesse canto.
É que esse amor provinha de aquém-berço. O poeta no-lo afirma nestas Sextilhas:
Tanto para mim nascestes
Tanto para vós nasci,
Que apenas me conhecestes,
Ao meu amor vos rendestes;
No momento em que vos vi
Vosso escravo me senti.
Inda mais: tristonho andava,
Sem nada me esclarecer
De tudo que interrogava...
É que eu já vos esperava
Ansioso e sem saber
Antes de vos conhecer.
Ele ama-a. Eis o coração aflito, alvoroçado, aos desatinos. Vem-lhe a incerteza de ser amado e, auscultando o próprio coração, ouve-lhe as queixas contra a razão que o não livrou das traças da moléstia. E o poeta lhe responde neste mimo, digno de Bocage:
FALANDO AO CORAÇÃO
Cuidoso coração desconsolado,
Quem pena sentirá da tua pena,
Se essa, que a tantos tratos te condena
É cega ou tal se finge ao teu cuidado?
Não te aconselharei, fora baldado;
Nada agora teu ânimo serena
E o conselho é um consolo que envenena
A quem feriu de morte a mãe do Fado.
Mas vejo que a Razão, doudo, procuras,
Preso à dona de um gesto peregrino,
Culpas lançar das próprias amarguras.
Contra a força do amor quem se acautela?
Meia culpa – te vem do teu destino,
E outra metade – da beleza d’Ela.
E ela o ama. Tem a certeza desse amor; falam-se, entrejuram-se, idealizam entre si o que idealizam todos os amantes. Mas, no melhor do sonho, chovem cinzas. Mãos ferozes roubam-lhe a mulher querida. Forçam-na a um casamento rico, arrancam-lhe o Sim de que fala o Poeta e ei-la noutros braços, perdida para sempre.
Para sempre, porque o poeta é nobre. Um cavaleiro de alta linha não se dobra à indignidade do adultério. Quer o sacrifício, prefere-o porque ele exalta; quer manter bem casta essa visão que lhe sobredoura a vida.
FORTES
Quanto mais forte a penitência escura,
Que nos lançou nos ermos da agonia,
Nos pesava, - ser frágil eu tremia
De nossa paciência a compustura.
Tantas vezes nos vimos na loucura
De perde-la, tão mal nos denfendia
De nós mesmos, que foi mister um dia
Fugirmo-nos por te-la mais segura.
Tudo fizemos pela castidade,
Não por satisfazer vão preconceitos
Nem por vaidosa, hipócrita piedade,
Mas por nós, por cumprir altos preceitos.
Conservando serena a majestade
Do amor, eterno e triste, em nossos peitos.
E ei-lo solitário, entrando a mata muda, fugindo ao seu amor. Vede como sofre:
VENCIDO
Da floresta no seio augusto e grave,
Na hora em que mais amargam minhas dores,
Entro em busca da paz que viça as flores
E enche de majestade a incerta nave.
De uma árvore gigante à sombra suave
Sentado escuto uma água entre verdores,
E espero em vão, do mal para os rigores,
Céu que abrande ou bálsamo que os lave.
Espero em vão, porque, quanto procuro
Incessante vencer em mim, consiste
No eterno recordar, ferrenho e duro,
Da maldição que sobre nós persiste:
Vós – feita escrava, eu – neste exílio obscuro
Solitário, vencido, enfermo, triste.
Para manter firme essa resolução, essa ambição de pureza, o poeta ausenta-se, vai curtir no ermo sua roxa, infinita, lânguida saudade.
Toda a segunda parte das Folhas de um Poema é o desfiar de um pranto silencioso. Não suponhais porém que seja abatimento, quedas do orgulho, queixas de malaventurado. Não, que o espírito é soberbo, conserva no infortúnio e na prosperidade a aequem mentem que Horácio nos receita. Eis como se mostra na página final do livro:
Embora pela dúvida ferido
Sempre firme e sereno me hão de ver;
Não mostro compostura de vencido,
Tenho orgulhos e glória em meu viver.
E não me deixo súbito abater.
Fraqueza alguma há de alterar-me os traços
Porque há um só coração em dois pedaços
A palpitar em nós com o mesmo ardor,
E eu vivo a me guardar para os teus braços
Guardo-me todo para o teu amor.
Vimos o livro, vimos a alma em sua plenitude, vimos a vida mesma do cantor. Não falemos de sua morte. Falemos ainda e sempre dessa vida que teve uma tragédia íntima, tragédia amorosa. As almas fortes querem lances desses para alimentar-se. Sofrimento é o vinho que lhes cabe. Marcham para o dissabor como sedentos para os mananciais. Se essa alma é poeta a mágoa acende, em suas noites, fogos de artifício e luminárias. Ela vê o Sonho, que o Sonho é a amargura da não realização. Cresce, cresce, desmedidamente porque a sua condição vital se volve em aspirar. Sim! Viver não é ficar, é ir; não é equilibrar-se, é turbilhonar; não é a contemplação, é a fascinação. Eu vivo se o meu ser percebe a força que o arrasta ou se ele mesmo é força arrastadora. Há mais vida, muito mais, nas próprias quedas que no repouso. O universo inteiro é uma queda eterna; astros caem no vácuo; toda a natureza é uma ininterrupta degradação da Energia. Sem desmoronamentos não há reconstruções, e a minha perfeição se mede pelo que houve em mim de aviltamento. Annibal Theophilo viveu, porque sofreu. Teve a glória de honrar tal sofrimento. Honramos o sofrimento exaltando-o, abençoando-o, defendendo-o, ouvi bem, defendendo-o contra a piedade alheia. O sofrimento verdadeiro é digno, não se queixa, não tolera consolações, detesta a compaixão dos frívolos. Tem pudor, é supersticioso, é tímido.
Afronta o mundo inteiro e foge dele, para a sua cela roxa impermeável à misericórdia dos medíocres.
Annibal viveu. Viveu e vive. Vive conosco, no seu livro, na perduração do seu amor. Vive, sinto que me ouve, que nos olha, que paira nesta sala, sobre nós, enchendo-a de seu espírito e de seu ideal. Vejo-o que vem, que se aproxima, que se materializa, que nos aparece em sombra, que nos beija.
Sombra amiga! Não me assustas. Amo o colóquio dos fantasmas. Nas minhas horas quietas alongo o meu espírito à Treva de onde vens e confabulo com as almas idas.
Deixa-me ver de perto a tua angústia, os vincos do teu rosto, as nódoas do teu sangue. Fostes demasiadamente velho para este mundo novo, trouxeste, da era antiga, o denodo e a lealdade, não podias vencer com eles a covardia humana; mas tiveste o insigne privilégio de ser integralmente o que devias ser, ressalvando o teu caráter, o teu orgulho e o teu amor. (José Oiticica)
Provam-no os episódios de sua vida e seu livro. São rasgos de aventuras, fúrias e desafios, alardes de coragem, requintes de galanteios e audácia. Contou-me um dia que, em certo museu do Norte, vendo uma armadura antiga, não se teve que a não vestisse para sentir-se batalhador avoengo. Pasmava da extraordinária força de homens que pelejavam desafogadamente sob tal peso e com tais armas. Para o poeta a sociedade ideal seria a corte do rei Arthur entre os cavaleiros da Table Ronde. Encontraria lá
...torneios, justas, correrias,
Serenatas, duelos e sombrias
Batalhas a arma branca, tumultuárias.
Assistiria em Cardigan, na floresta de Broceliande, à caçada do veado branco proposta pelo rei aos cavaleiros seus amigos. O prêmio ao preador da caça rara consistia em dar um beijo na boca da mais formosa dama, á escolha, entre as da corte.
Era fatal a conseqüência. Nenhum dos cavaleiros suportava a afronta de declarar alguém que sua dama não era a mais formosa. E principiava o certame estridoroso.
Em pleno século XIV, Annibal Theophilo seria um Carlos Zeno, de que as gestas venezianas cantam maravilhas.
Podemos afirmar que a Idade Média foi a época da reza. Nunca os europeus rezaram tanto. Era das igrejas, dos conventos, das devoções, dos santos, dos te-deums, das missas, dos sacramentos, das benzeduras, dos responsos, das ladainhas, das promessas, nela a oração iniciava os atos menos graves, penetrava as horas todas, repetia-se regularmente ao despertar , ao recolher, às refeições, ao por do sol, nos passeios, na meditação, no ócio e na luta. A igreja era um sindicato intercessor cujas taxas eram preces. Annibal, o ateu Annibal, deliciou-se na suavidade desse religiosismo ingênuo e cultuando a sua amada, o seu ídolo-mulher, compôs quatro orações a sua senhora, a sua Virgem Sacratíssima, das quais recitarei a mais curta:
Ave Senhora da minha vida
Meu pensamento vive por vós:
Entre as Perfeitas sois a escolhida
Alto é o Afeto que brilha em nós.
Celeste ramo de eternas flores,
Anjo da Guarda de ânimo forte,
Volvei os Olhos às minhas dores,
Supremo Bem.
Agora e na hora da minha morte
Amém!
No estilo de Annibal há muito de antigo e algo de novo. Não é raro ver em literatura um regresso ás formas velhas, arcaização do pensamento ou da expressão.
... Porque Annibal não é um novo que se veste à antiga; é um troveiro ressurgido que fala como nós. Nele a essência, o de índole, o de cerne é a cavalaria, a Idade Média. Era arcaico de nascença. Era o século XI ou XII reencarnado em nosso século, civilizadíssimo para o seu ânimo de campeador.
Quanto mais lhe sondo o estilo, mais lhe apuro a espontaneidade. Annibal não copiou Camões ou os trovadores. Era inatamente trovador e camoniano. Nele o não ele é o que aparece novo, os modos de dizer da sua geração. Nesse temperamento o amor há de forçosamente ser medievo. Chamo-lhe medievo na acepção mais alta que lhe deram as Cours d’Amour francesas. O código do rei Arthur que um cavaleiro conquistara ao falcão do rei pousado num poleiro de ouro, decretava no artigo IX: Amare nemo potest, nisi qui amoris suasione compellitur. Ninguém pode amar verdadeiramente senão fascinado pelo amor. Amar sinceramente é uma vocação da vida que nos chama a perpetuá-la. Só o amor-apelo é digno. O tribunal das damas condenava sem misericórdia o amor-negócio, o amor-política. Para amar cavalheirescamente era mister impregnar o corpo, os nervos, a razão, todo o ser físico e mental na imagem feminina eleita. Cumpria, segundo o artigo 26, executar todos os atos com o pensamento em sua dama. Amor nobre, amor-destino era aquele envenenamento, aquele mal que invoca um trovador de cancioneiro de Montpellier:
Mal d’amors, prenés m’amie
Mal d’amors, prenés la moi
Prenés le je vos en prie
Et mequier en foi
(Raynaud – Recueil de motets français – I, 141)
Tal peçonha intoxicou Annibal.
Toda a sua vida foi um silente, doloroso lamento de saudade, um marejar os olhos d’água continuamente. Medieval legítimo escolheu a sua dama, desapoderadamente amou-a, amou-a com a loucura, a pertinácia, a doença de Florendos amando Miraguarda. Pouco antes de morrer manifestava-se comovido as torturas desse desengano, desse amor frustrado que lhe ensombra os versos com desesperos e revoltas. A maior parte do seu livro é a celebração perpetuo carmine desse tresloucamento. Paixão sincera, elevadíssima e pura. Imposições e conveniências arrancaram-lhe a Dulcinéia transferindo-a a mãos impuras e imeritórias. O fanático viu a sua santa conspurcada por sacrilégios. Houve alguém que lhe entrou no templo, violou o altar, desnichou a imagem venerada e vendeu-a infandamente.
Calculai, senhores, as borrascas desse espírito, desse Palmeirim retardatário ao ver sua Polinarda entregue a mãos de turcos. Avaliai, vós mesmos, os sem limites dessa crueldade e abri depois o livro. Tereis formado, em vós, aquele ambiente interno que eu vos apontei como indispensável à compreensão do poeta. Vereis o que é um sonho perturbado, o que é despertar alguém para o pesadelo. Então, gemendo, esses versos se movimentarão aos vossos olhos, pulsará sangue nessas veias, faiscará verdade e realidade nesse canto.
É que esse amor provinha de aquém-berço. O poeta no-lo afirma nestas Sextilhas:
Tanto para mim nascestes
Tanto para vós nasci,
Que apenas me conhecestes,
Ao meu amor vos rendestes;
No momento em que vos vi
Vosso escravo me senti.
Inda mais: tristonho andava,
Sem nada me esclarecer
De tudo que interrogava...
É que eu já vos esperava
Ansioso e sem saber
Antes de vos conhecer.
Ele ama-a. Eis o coração aflito, alvoroçado, aos desatinos. Vem-lhe a incerteza de ser amado e, auscultando o próprio coração, ouve-lhe as queixas contra a razão que o não livrou das traças da moléstia. E o poeta lhe responde neste mimo, digno de Bocage:
FALANDO AO CORAÇÃO
Cuidoso coração desconsolado,
Quem pena sentirá da tua pena,
Se essa, que a tantos tratos te condena
É cega ou tal se finge ao teu cuidado?
Não te aconselharei, fora baldado;
Nada agora teu ânimo serena
E o conselho é um consolo que envenena
A quem feriu de morte a mãe do Fado.
Mas vejo que a Razão, doudo, procuras,
Preso à dona de um gesto peregrino,
Culpas lançar das próprias amarguras.
Contra a força do amor quem se acautela?
Meia culpa – te vem do teu destino,
E outra metade – da beleza d’Ela.
E ela o ama. Tem a certeza desse amor; falam-se, entrejuram-se, idealizam entre si o que idealizam todos os amantes. Mas, no melhor do sonho, chovem cinzas. Mãos ferozes roubam-lhe a mulher querida. Forçam-na a um casamento rico, arrancam-lhe o Sim de que fala o Poeta e ei-la noutros braços, perdida para sempre.
Para sempre, porque o poeta é nobre. Um cavaleiro de alta linha não se dobra à indignidade do adultério. Quer o sacrifício, prefere-o porque ele exalta; quer manter bem casta essa visão que lhe sobredoura a vida.
FORTES
Quanto mais forte a penitência escura,
Que nos lançou nos ermos da agonia,
Nos pesava, - ser frágil eu tremia
De nossa paciência a compustura.
Tantas vezes nos vimos na loucura
De perde-la, tão mal nos denfendia
De nós mesmos, que foi mister um dia
Fugirmo-nos por te-la mais segura.
Tudo fizemos pela castidade,
Não por satisfazer vão preconceitos
Nem por vaidosa, hipócrita piedade,
Mas por nós, por cumprir altos preceitos.
Conservando serena a majestade
Do amor, eterno e triste, em nossos peitos.
E ei-lo solitário, entrando a mata muda, fugindo ao seu amor. Vede como sofre:
VENCIDO
Da floresta no seio augusto e grave,
Na hora em que mais amargam minhas dores,
Entro em busca da paz que viça as flores
E enche de majestade a incerta nave.
De uma árvore gigante à sombra suave
Sentado escuto uma água entre verdores,
E espero em vão, do mal para os rigores,
Céu que abrande ou bálsamo que os lave.
Espero em vão, porque, quanto procuro
Incessante vencer em mim, consiste
No eterno recordar, ferrenho e duro,
Da maldição que sobre nós persiste:
Vós – feita escrava, eu – neste exílio obscuro
Solitário, vencido, enfermo, triste.
Para manter firme essa resolução, essa ambição de pureza, o poeta ausenta-se, vai curtir no ermo sua roxa, infinita, lânguida saudade.
Toda a segunda parte das Folhas de um Poema é o desfiar de um pranto silencioso. Não suponhais porém que seja abatimento, quedas do orgulho, queixas de malaventurado. Não, que o espírito é soberbo, conserva no infortúnio e na prosperidade a aequem mentem que Horácio nos receita. Eis como se mostra na página final do livro:
Embora pela dúvida ferido
Sempre firme e sereno me hão de ver;
Não mostro compostura de vencido,
Tenho orgulhos e glória em meu viver.
E não me deixo súbito abater.
Fraqueza alguma há de alterar-me os traços
Porque há um só coração em dois pedaços
A palpitar em nós com o mesmo ardor,
E eu vivo a me guardar para os teus braços
Guardo-me todo para o teu amor.
Vimos o livro, vimos a alma em sua plenitude, vimos a vida mesma do cantor. Não falemos de sua morte. Falemos ainda e sempre dessa vida que teve uma tragédia íntima, tragédia amorosa. As almas fortes querem lances desses para alimentar-se. Sofrimento é o vinho que lhes cabe. Marcham para o dissabor como sedentos para os mananciais. Se essa alma é poeta a mágoa acende, em suas noites, fogos de artifício e luminárias. Ela vê o Sonho, que o Sonho é a amargura da não realização. Cresce, cresce, desmedidamente porque a sua condição vital se volve em aspirar. Sim! Viver não é ficar, é ir; não é equilibrar-se, é turbilhonar; não é a contemplação, é a fascinação. Eu vivo se o meu ser percebe a força que o arrasta ou se ele mesmo é força arrastadora. Há mais vida, muito mais, nas próprias quedas que no repouso. O universo inteiro é uma queda eterna; astros caem no vácuo; toda a natureza é uma ininterrupta degradação da Energia. Sem desmoronamentos não há reconstruções, e a minha perfeição se mede pelo que houve em mim de aviltamento. Annibal Theophilo viveu, porque sofreu. Teve a glória de honrar tal sofrimento. Honramos o sofrimento exaltando-o, abençoando-o, defendendo-o, ouvi bem, defendendo-o contra a piedade alheia. O sofrimento verdadeiro é digno, não se queixa, não tolera consolações, detesta a compaixão dos frívolos. Tem pudor, é supersticioso, é tímido.
Afronta o mundo inteiro e foge dele, para a sua cela roxa impermeável à misericórdia dos medíocres.
Annibal viveu. Viveu e vive. Vive conosco, no seu livro, na perduração do seu amor. Vive, sinto que me ouve, que nos olha, que paira nesta sala, sobre nós, enchendo-a de seu espírito e de seu ideal. Vejo-o que vem, que se aproxima, que se materializa, que nos aparece em sombra, que nos beija.
Sombra amiga! Não me assustas. Amo o colóquio dos fantasmas. Nas minhas horas quietas alongo o meu espírito à Treva de onde vens e confabulo com as almas idas.
Deixa-me ver de perto a tua angústia, os vincos do teu rosto, as nódoas do teu sangue. Fostes demasiadamente velho para este mundo novo, trouxeste, da era antiga, o denodo e a lealdade, não podias vencer com eles a covardia humana; mas tiveste o insigne privilégio de ser integralmente o que devias ser, ressalvando o teu caráter, o teu orgulho e o teu amor. (José Oiticica)
Manuscrito do Soneto que recebeu o nome Consolação e, mais tarde, ao ser publicado no livro Rimas, sofrendo modificações, passou a ser chamado Fortes.
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Segredo De Amor, Senhora...
O número 2 de Panóplia, revista cultural de propriedade de Pedreira Duprat, publicada em São Paulo, em fevereiro de 1918, direção literária a cargo de Homero Prates e Guilherme de Almeida e direção artística sob a responsabilidade de Di Cavalcanti, divulgou artigo de A. L. Silveira da Mota, da família dos Jaceguai, em que se recorda com ternura a figura de Annibal Theophilo: Annibal Theophilo: Traços De Sua Vida, Caráter E Feição Intelectual Em 1907, achando-me então no Amazonas, num remoto lugarejo escondido entre o manso igarapé das Três Casas e o largo e vultoso rio Madeira, tive a fortuna de travar relações com o malogrado Annibal Theophilo – lindo espírito, alma boníssima – a quem o destino reservou tão trágico fim. Datou dessa época a nossa ininterrupta e cordial amizade. De torna-viagem, tendo deixado o Rio, subira de novo o grande afluente do Amazonas, para ali, naquele pouso tranqüilo, de vida rudimentar, quase selvagem, reassumir o modestíssimo encargo de mestre-escola. Desembarcou risonho e satisfeito, trazendo por única bagagem os seus livros favoritos, as suas esperanças e sonhos. Por esse tempo, posto ainda não tivesse dado a lume o seu primeiro livro, cuja publicação protelou por muito tempo, o seu nome já gozava de um justo prestígio entre a minoria ledora do país, mercê de trabalhos esparsos, insertos em revistas e jornais do Rio, dentre os quais para logo se destacou o célebre soneto A Cegonha, traindo apuros de forma e o pensamento filosófico que o inspirou. Espírito aventureiro, acentuadamente romântico, a par de um coração simples, avesso às preocupações exteriores da vida literária, comprazia-se em viver no casulo de sua grande modéstia, fiel à afeição de seus amigos e à religião da Beleza e do Amor, todo votado ao culto de sua Arte, numa abstração de predestinado, sem visionar o aplauso público, nem se deixar enternecer pelos louvores da crítica. Outro fosse o seu feitio, e, certo, não teria rumado resolutamente para o desconhecido – esse Amazonas longínquo, sedutor e mortífero, novo jardim das Hespérides, que se oferta todo em riquezas aos que lhe resistem às agruras climatológicas. Alma toda feita de refinadas sensibilidades, não era, nem podia ser um ambicioso vulgar, senão um sedento de sensações, espírito sem repouso, povoado de fantasmas ideais. |
Abandonando na metrópole a sua roda intelectual tão restrita quanto brilhante, de que me acodem ao acaso os nomes ilustres de Alcides Maya, Goulart de Andrade, Annibal Amorim e Leal de Souza, ei-lo agora perdido na áspera solidão do Amazonas, de cuja natureza prodigiosa, pletórica de seiva – vasto cenário de exuberâncias fantásticas, berrante de exotismos – foi um contemplador maravilhoso. Não se encontra, entretanto, em nenhuma de suas estrofes vestígios dessa atração, o que mais adiante tentarei explicar.
Era hábito nosso sair em excursões venatórias, através da mataria hirsuta, mas não raro mascarava isso um pretexto para algumas horas de completo alheamento por sob as largas frondes acolhedoras, onde o poeta, esquecendo a carabina, abria-se comigo em confidências, dizendo-me intimidades de sua vida, de seu coração e de sua Arte, vida e Arte formando um vivo contraste, esta toda truncada em fragmentos de drama, aquela toda entretecida de suavidade e de afagos...
No convívio pacificador das árvores amigas, recitava-me, então, com aquela dicção impecável que lhe abemolava a voz em inflexões musicais, os versos preferidos de Alberto de Oliveira, de Olavo Bilac, de Raymundo Corrêa e de outros que viviam na sua admiração e guardava de memória. Dizia-me também os próprios poemas, de cunho camoniano, trabalhados com pureza de linguagem e sobriedade de estilo, e, de preferência, os seus vilancetes galantes, celebrando o amor de sua dama, com uma nota brejeira de permeio, à maneira dos trovadores quinhentistas.
Adolescente ainda, tímido e melancólico, longe do calor da família, num meio ingrato de especulação mercantil, sem amigos, sem um livro, sem um jornal sequer com que distrair as minhas horas solitárias, as minhas crises de nostalgia, encontrei em Annibal Theophilo uma grande amizade que me faltava, e uma clara inteligência que exerceu sobre o meu espírito em formação a mais benéfica influência. Folheei, então, com avidez faminta, os seus belos livros, e ouvi-lhe, com fascinada obediência, os fecundos conselhos. Daí por diante habituei-me a ver nele um irmão mais velho a quem muito admirava e queria.
Meses a fio vivemos sob o mesmo rude teto, dormindo em redes próximas, na mais íntima e fraternal camaradagem.
Recordo-me bem de sua figura como mestre-escola, o ar convicto da missão que se impusera, a maneira afável, mas dominadora, com que tratava a petizada, o seu entusiasmo pelos discípulos mais vivos e inteligentes, a sua bondade paternal no trato das pequenas cabeças entorpecidas e indomáveis.
À margem de águas plácidas, a escola era uma construção sumária, levantada em pau a pique, e cuja cobertura com folhas de buriti dava-lhe um aspecto pitoresco e ingênuo. Os meninos freqüentavam as aulas descalços, e o mestre, por sua vez, adaptando-se ao meio, punha de parte as preocupações do vestuário, e era de vê-lo, muito sério, ao alto da “cátedra”, a governar o seu pequeno rebanho, em mangas de camisa, o que não importava na quebra da disciplina e da pontualidade do horário. Era este ao contrário, seguido à risca, e só uma vez por outra conseguia-se arranca-lo àquele rigorismo escolar. Nesses dias extraordinários o mestre, sem quebrar a linha, anunciava gravemente o sueto à petizada, que debandava alacremente.
Desventurado Annibal Theophilo! Os atos mais prosaicos de sua vida, cortada de trabalhos e lutas, refletiam a sua maneira interior, a sua nobre e generosa alma de artista exilado de sua época. Arquitetava repetidas vezes projetos inviáveis para cuja realização fora mister a posse de uma imensa fortuna. Viajar, percorrer em caravana de intelectuais toda a superfície do globo, colhendo impressões várias, fortes de ineditismo; viver outra vida, sentir outras almas, através de povos e terras desconhecidos, tal era o seu grande sonho. Comumente, porém, depois de projetar largos cometimentos e formular planos de grande vulto, rematava dizendo contentar-se com ir até a Espanha, pátria divina de Campoamor e de Cervantes, onde devia errar ainda a alma de seus maiores, porque Annibal Theophilo tinha nas veias o ardente sangue castelhano. Esta aspiração, quase mesquinha para quem sonhara palmilhar toda a face do orbe, realizou-a um dia, mas não chegou a ser uma excursão solene, como sempre ideara, senão uma ligeira fuga do território português, para onde fora acidentalmente, em companhia de um amigo enfermo.
O sentimento da bravura cavalheiresca e da lealdade absoluta ele o tinha desenvolvido em grau paralelo ao senso estético, mas o traço predominante do seu caráter era uma grande, uma enternecedora bondade, que o levava, num impulso instintivo, a levantar o braço forte e generoso em proteção dos fracos, dos humildes, dos desamparados, afrontando, com uma arrogância de cavaleiro medievo, o despotismo dos poderosos, a sua injustiça e o seu egoísmo.
Vários cronistas brilhantes que se impuseram a dolorosa missão de prematuramente fazer o elogio fúnebre do poeta, assinalaram-lhe com muita justeza o feitio antigo, o culto apaixonado pelo mais alto épico de Portugal e pelos bardos quinhentistas e seiscentistas, cujos modelos clássicos adotou, não sem lhes imprimir um cunho pessoal, de um flagrante originalismo. Annibal Theophilo era, de fato, “um retardatário sublime”, na expressão exata de Alcides Maya; um espírito que se comprazia em fugir às correntes novas, fixadoras das várias fases da evolução intelectual. Mas deslocado do seu tempo, positivamente fora do seu século, de cujo espírito pré-concebidamente se desentendia, conservou-se coerentemente fiel aos modelos trovadorescos de que se serviu com talento e em que soube vazar a sua alma antiga.
A geração atual trabalha por egoísmos ferozes, toda embebida num realismo dissolvente, hostilizava a sua delicada sensibilidade. Fora talhado para surgir em tempos heróicos: devera ser contemporâneo de Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro ou ter poetado no reino de D. Diniz, o rei-poeta, cujos áulicos eram como ele trovadores galantes, formando todos, um dos ciclos mais brilhantes na história da poesia portuguesa. Contudo, adstrito às formas clássicas em que fundiu a sua estesia, logrou Annibal Theophilo culminar, fazendo obra perfeita em facetas sem jaça.
O sabor camoniano dos seus versos, atente embora contra o futurismo dos inovadores e livremetristas, não lhe rouba a fragância, nem o acento emocional, nem o perfume lírico que os espiritualiza, comunicando-lhes antes um encanto novo. Leia-se por exemplo este vilancete:
ESFORÇO INÚTIL
Segredo de amor, senhora,
Pode a boca o não dizer,
O olhar não sabe esconder.
Falais-me serena, embora!
Sinto que vos esforçais...
Não dissimulemos mais.
Segredo de amor, senhora,
Quereis-me ocultar agora
Tão fácil de conhecer?
Pode a boca o não dizer.
Mesmo que me olheis tranqüila,
Basta que eu vos fite o olhar
Para ver – e me orgulhar! –
Na escuridão que cintila
Dentro de cada pupila,
Minh’alma resplandecer...
O olhar não sabe esconder.
Se me julgais abjeto,
Por que me calais o amor?
Não vá tão longe o pudor
Que vos pese um puro afeto
Se é o que desejais discreto
É tarde já para o ser.
Ambos de amor abrasados,
Sem nos podermos fugir,
De que nos serve fingir?
Em se ocultando cuidados
Mais prontos são revelados,
Todos vêm logo a saber...
O olhar não sabe esconder...
Assim se explica que o poeta não haja cantado o espetáculo maravilhoso da natureza amazônica, cuja sensação de grandeza não podia deixar de penetrá-lo fundamente. Desventuroso amigo! Quantas vezes o fui surpreender em atitudes extáticas de puro deslumbramento, diante de velhos troncos seculares – colunas imensas, ajaezadas de flores estranhas, livres domínios de aves cantoras, ou absorvido na graça leve das palmeiras, que outras não há de tão variada espécie e caprichosos recortes como as daquela flora surpreendente.
Toda a pujança tropical da floresta amazônica, de uma grandeza aterradora, de uma augusta magnitude, estava a pedir, como tema inédito, o vasto delineamento de uma epopéia homérica. Era esse um pensamento seu. Bastas vezes me explanou, demorando as vivas pupilas nas altas franças das árvores senhoriais. Mas passados esses transportes, ei-lo já curvado para o solo, a examinar, em análises microscópicas, com carinho de um botânico poeta, a estrutura fragílima de um tortulho bizarro, ou uma simples florinha anônima, sumida num recesso mais sombrio do verde labirinto.
Elegíaco por temperamento, sentia-se incapaz de traçar uma alta epopéia, mas que lindos poemas pastoris, que deliciosas éclogas trazia em surdina dentro d’alma!
Tal era o artista.
O homem, esse tinha o rijo tipo de um mosqueteiro com todas as características da beleza máscula. Alto, peito largo, membros vigorosos, a cabeça bem desenhada, a fronte ampla, uma cabeleira ondulada e forte, e olhos, sobretudo os olhos, tinha-os magníficos, olhos de intelectual e de poeta, de uma doçura quase feminina, que se quebrava subitamente em fulgurações voluntariosas.
Ganhou mui legitimamente foros de um conversador notável; e o era realmente, mercê da afabilidade do seu trato, da sua jovialidade buliçosa, do timbre insinuante de usa voz. Espírito solerte, reticenciado de ironias finas, revidava com presteza, em réplicas desconcertantes.
Um dia a fatalidade baixou sinistra sobre esse homem de rara espécie, forte e belo na sua estrutura física, moral e intelectual.
Annibal Theophilo deixa uma bagagem diminuta de obra literária; um livro apenas, e esse impresso em Portugal, em sete dias, e, por essa razão, eivado de erros. Essa edição não foi posta à venda e poucos exemplares foram distribuídos entre amigos do poeta.
A Academia Brasileira de Letras bem poderia se encarregar de reunir em um volume condigno todas as suas poesias, prestando assim não só uma justa homenagem ao poeta delicadíssimo que foi Annibal Theophilo, senão também enriquecendo a coleção da poesia nacional com um livro de incontestável valor. (A. L. Silveira da Mota)
Era hábito nosso sair em excursões venatórias, através da mataria hirsuta, mas não raro mascarava isso um pretexto para algumas horas de completo alheamento por sob as largas frondes acolhedoras, onde o poeta, esquecendo a carabina, abria-se comigo em confidências, dizendo-me intimidades de sua vida, de seu coração e de sua Arte, vida e Arte formando um vivo contraste, esta toda truncada em fragmentos de drama, aquela toda entretecida de suavidade e de afagos...
No convívio pacificador das árvores amigas, recitava-me, então, com aquela dicção impecável que lhe abemolava a voz em inflexões musicais, os versos preferidos de Alberto de Oliveira, de Olavo Bilac, de Raymundo Corrêa e de outros que viviam na sua admiração e guardava de memória. Dizia-me também os próprios poemas, de cunho camoniano, trabalhados com pureza de linguagem e sobriedade de estilo, e, de preferência, os seus vilancetes galantes, celebrando o amor de sua dama, com uma nota brejeira de permeio, à maneira dos trovadores quinhentistas.
Adolescente ainda, tímido e melancólico, longe do calor da família, num meio ingrato de especulação mercantil, sem amigos, sem um livro, sem um jornal sequer com que distrair as minhas horas solitárias, as minhas crises de nostalgia, encontrei em Annibal Theophilo uma grande amizade que me faltava, e uma clara inteligência que exerceu sobre o meu espírito em formação a mais benéfica influência. Folheei, então, com avidez faminta, os seus belos livros, e ouvi-lhe, com fascinada obediência, os fecundos conselhos. Daí por diante habituei-me a ver nele um irmão mais velho a quem muito admirava e queria.
Meses a fio vivemos sob o mesmo rude teto, dormindo em redes próximas, na mais íntima e fraternal camaradagem.
Recordo-me bem de sua figura como mestre-escola, o ar convicto da missão que se impusera, a maneira afável, mas dominadora, com que tratava a petizada, o seu entusiasmo pelos discípulos mais vivos e inteligentes, a sua bondade paternal no trato das pequenas cabeças entorpecidas e indomáveis.
À margem de águas plácidas, a escola era uma construção sumária, levantada em pau a pique, e cuja cobertura com folhas de buriti dava-lhe um aspecto pitoresco e ingênuo. Os meninos freqüentavam as aulas descalços, e o mestre, por sua vez, adaptando-se ao meio, punha de parte as preocupações do vestuário, e era de vê-lo, muito sério, ao alto da “cátedra”, a governar o seu pequeno rebanho, em mangas de camisa, o que não importava na quebra da disciplina e da pontualidade do horário. Era este ao contrário, seguido à risca, e só uma vez por outra conseguia-se arranca-lo àquele rigorismo escolar. Nesses dias extraordinários o mestre, sem quebrar a linha, anunciava gravemente o sueto à petizada, que debandava alacremente.
Desventurado Annibal Theophilo! Os atos mais prosaicos de sua vida, cortada de trabalhos e lutas, refletiam a sua maneira interior, a sua nobre e generosa alma de artista exilado de sua época. Arquitetava repetidas vezes projetos inviáveis para cuja realização fora mister a posse de uma imensa fortuna. Viajar, percorrer em caravana de intelectuais toda a superfície do globo, colhendo impressões várias, fortes de ineditismo; viver outra vida, sentir outras almas, através de povos e terras desconhecidos, tal era o seu grande sonho. Comumente, porém, depois de projetar largos cometimentos e formular planos de grande vulto, rematava dizendo contentar-se com ir até a Espanha, pátria divina de Campoamor e de Cervantes, onde devia errar ainda a alma de seus maiores, porque Annibal Theophilo tinha nas veias o ardente sangue castelhano. Esta aspiração, quase mesquinha para quem sonhara palmilhar toda a face do orbe, realizou-a um dia, mas não chegou a ser uma excursão solene, como sempre ideara, senão uma ligeira fuga do território português, para onde fora acidentalmente, em companhia de um amigo enfermo.
O sentimento da bravura cavalheiresca e da lealdade absoluta ele o tinha desenvolvido em grau paralelo ao senso estético, mas o traço predominante do seu caráter era uma grande, uma enternecedora bondade, que o levava, num impulso instintivo, a levantar o braço forte e generoso em proteção dos fracos, dos humildes, dos desamparados, afrontando, com uma arrogância de cavaleiro medievo, o despotismo dos poderosos, a sua injustiça e o seu egoísmo.
Vários cronistas brilhantes que se impuseram a dolorosa missão de prematuramente fazer o elogio fúnebre do poeta, assinalaram-lhe com muita justeza o feitio antigo, o culto apaixonado pelo mais alto épico de Portugal e pelos bardos quinhentistas e seiscentistas, cujos modelos clássicos adotou, não sem lhes imprimir um cunho pessoal, de um flagrante originalismo. Annibal Theophilo era, de fato, “um retardatário sublime”, na expressão exata de Alcides Maya; um espírito que se comprazia em fugir às correntes novas, fixadoras das várias fases da evolução intelectual. Mas deslocado do seu tempo, positivamente fora do seu século, de cujo espírito pré-concebidamente se desentendia, conservou-se coerentemente fiel aos modelos trovadorescos de que se serviu com talento e em que soube vazar a sua alma antiga.
A geração atual trabalha por egoísmos ferozes, toda embebida num realismo dissolvente, hostilizava a sua delicada sensibilidade. Fora talhado para surgir em tempos heróicos: devera ser contemporâneo de Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro ou ter poetado no reino de D. Diniz, o rei-poeta, cujos áulicos eram como ele trovadores galantes, formando todos, um dos ciclos mais brilhantes na história da poesia portuguesa. Contudo, adstrito às formas clássicas em que fundiu a sua estesia, logrou Annibal Theophilo culminar, fazendo obra perfeita em facetas sem jaça.
O sabor camoniano dos seus versos, atente embora contra o futurismo dos inovadores e livremetristas, não lhe rouba a fragância, nem o acento emocional, nem o perfume lírico que os espiritualiza, comunicando-lhes antes um encanto novo. Leia-se por exemplo este vilancete:
ESFORÇO INÚTIL
Segredo de amor, senhora,
Pode a boca o não dizer,
O olhar não sabe esconder.
Falais-me serena, embora!
Sinto que vos esforçais...
Não dissimulemos mais.
Segredo de amor, senhora,
Quereis-me ocultar agora
Tão fácil de conhecer?
Pode a boca o não dizer.
Mesmo que me olheis tranqüila,
Basta que eu vos fite o olhar
Para ver – e me orgulhar! –
Na escuridão que cintila
Dentro de cada pupila,
Minh’alma resplandecer...
O olhar não sabe esconder.
Se me julgais abjeto,
Por que me calais o amor?
Não vá tão longe o pudor
Que vos pese um puro afeto
Se é o que desejais discreto
É tarde já para o ser.
Ambos de amor abrasados,
Sem nos podermos fugir,
De que nos serve fingir?
Em se ocultando cuidados
Mais prontos são revelados,
Todos vêm logo a saber...
O olhar não sabe esconder...
Assim se explica que o poeta não haja cantado o espetáculo maravilhoso da natureza amazônica, cuja sensação de grandeza não podia deixar de penetrá-lo fundamente. Desventuroso amigo! Quantas vezes o fui surpreender em atitudes extáticas de puro deslumbramento, diante de velhos troncos seculares – colunas imensas, ajaezadas de flores estranhas, livres domínios de aves cantoras, ou absorvido na graça leve das palmeiras, que outras não há de tão variada espécie e caprichosos recortes como as daquela flora surpreendente.
Toda a pujança tropical da floresta amazônica, de uma grandeza aterradora, de uma augusta magnitude, estava a pedir, como tema inédito, o vasto delineamento de uma epopéia homérica. Era esse um pensamento seu. Bastas vezes me explanou, demorando as vivas pupilas nas altas franças das árvores senhoriais. Mas passados esses transportes, ei-lo já curvado para o solo, a examinar, em análises microscópicas, com carinho de um botânico poeta, a estrutura fragílima de um tortulho bizarro, ou uma simples florinha anônima, sumida num recesso mais sombrio do verde labirinto.
Elegíaco por temperamento, sentia-se incapaz de traçar uma alta epopéia, mas que lindos poemas pastoris, que deliciosas éclogas trazia em surdina dentro d’alma!
Tal era o artista.
O homem, esse tinha o rijo tipo de um mosqueteiro com todas as características da beleza máscula. Alto, peito largo, membros vigorosos, a cabeça bem desenhada, a fronte ampla, uma cabeleira ondulada e forte, e olhos, sobretudo os olhos, tinha-os magníficos, olhos de intelectual e de poeta, de uma doçura quase feminina, que se quebrava subitamente em fulgurações voluntariosas.
Ganhou mui legitimamente foros de um conversador notável; e o era realmente, mercê da afabilidade do seu trato, da sua jovialidade buliçosa, do timbre insinuante de usa voz. Espírito solerte, reticenciado de ironias finas, revidava com presteza, em réplicas desconcertantes.
Um dia a fatalidade baixou sinistra sobre esse homem de rara espécie, forte e belo na sua estrutura física, moral e intelectual.
Annibal Theophilo deixa uma bagagem diminuta de obra literária; um livro apenas, e esse impresso em Portugal, em sete dias, e, por essa razão, eivado de erros. Essa edição não foi posta à venda e poucos exemplares foram distribuídos entre amigos do poeta.
A Academia Brasileira de Letras bem poderia se encarregar de reunir em um volume condigno todas as suas poesias, prestando assim não só uma justa homenagem ao poeta delicadíssimo que foi Annibal Theophilo, senão também enriquecendo a coleção da poesia nacional com um livro de incontestável valor. (A. L. Silveira da Mota)
Jorge Jobim: Um Segredo Na Vida Do Poeta
Este é o título de artigo de Jorge Jobim, publicado na edição de 25/12/1920 de Ilustração Brasileira. Segue-se o texto completo:
Annibal Theophilo da Silva, tão conhecido pelo soneto A Cegonha e tão barbaramente sacrificado numa tragédia sem brilho, deixou-nos excelentes versos, enfeixados em volume, a que intitulou com extrema modéstia Rimas.
Mas, que é esse livro? É a história de uma grande e desgraçada afeição que encheu de fel a mocidade robusta de Annibal Theophilo. Em vida sua, nenhum de nós, seus íntimos, tinha o direito de trazer a público as mágoas que se lhe depararam na vida atribulada; mas, hoje, ele é morto, é mister que os que com ele conviveram e guardaram as confissões de sua alma aflita, forneçam dados seguros para em juízo definitivo aquilatar-lhe da nobreza do caráter e do valor da obra.
Adolescente ainda, os fermentos de sua índole buliçosa levedaram num grande afeto. Era tempo. Esse avatar do Cid Campeador não se compreenderia sem uma Chimena. Mas, ai dele! Se tivesse como fidalgo espanhol de combater ao sol das batalhas ou com D. Quixote, de lança em riste, desfazer agravos e libertar donzelas oprimidas, seria, certamente, vencedor. Imaginai, porém, durante um momento D. Rodrigo de Bivar em peleja contra os mesquinhos interesses coligados, pequenas intrigas de família, subalternas razões de fortuna, e vereis como sua glória empalidece e se apaga, como tudo isso está em desacordo com a nobreza do coração e a virilidade do caráter. Figurai-vos um instante o desbaratador dos mouros ressurreto nos dias de agora e vereis que não poderia ter subsistido à míngua de ambiente. Assim aconteceu com Annibal. Correspondido na afeição, o cavaleiro deu lugar ao poeta e este cantou em quadras comovidas os encantos de sua eleita.
Foi feliz durante alguns anos; a ventura acompanhou-o muito mais tempo do que a um certo califa que dizia ter sido feliz apenas quatorze dias em toda a vida. Mas, quando os pais de sua preferida perceberam que se não tratava de uma inclinação passageira, entraram a hostilizar com desusada tenacidade o já arraigado amor, por eles festejado e animado no início. Foram invocados vexatórios argumentos de haveres e posição social. Theophilo retraiu-se com amargura. Entrementes, a família da moça com ela instava e quebrava lanças para faze-la casar com um jovem primo, rico e portador de um título.
MÊS DE MAIO
O compromisso que ante o Juiz e a Igreja
Prestastes e nos fez tão separados,
Jamais há de impedir que eu sempre esteja
A memorar os dias já passados.
Pois, memora-los, é buscar motivo
Para saudar-vos como antigamente.
Porque viveis, é que inda sonho e vivo,
E, sonho e vivo neste amor somente.
Hoje Maio começa. Maio!... Dantes,
Como o recordo bem! Hoje, Senhora,
Eu ia, o mais ditoso dos amantes,
Levar-vos sempre uma lembrança, e agora,
Desta fria distância ilimitada,
Só vos posso ofertar meu pensamento...
E deserta de rosas minha estrada,
Só tenho goivos neste isolamento.
Meu pensamento... (Que ele sempre guarde
E preze a glória de se ver cativo,
Sem que impuro desejo algum aguarde
Satisfazer nas sombras em que vivo).
Annibal, com grande abnegação, nobremente digno, concitou-a a que obedecesse à vontade paterna, talvez para por em prova o grau de afeição que ela lhe tinha. Mas, essas experimentações são perigosas com as Chimenas de hoje; esta, vacilante, sem energia, deixou que outros resolvessem do seu destino e, por satisfazer as exigências paternas, acabou por aceitar o noivo que lhe impunham, levando para o casamento muito amor ainda por Theophilo e nenhum pelo marido. Este ato leviano decidiu da sorte do poeta. Casou ele também pouco depois, não direi por despeito – era bastante forte para se preservar dessas fraquezas – mas talvez por desesperação. Sepultou-se assim numa existência sem brilho... Foi mais ou menos por essa época que escreveu este soneto:
CEGO E SURDO
Que espécie de homem de vontade escura
É esse a que vos forçam que baixeis,
Que sabe que o aceitais com amargura,
Que sabe que vos quero e me quereis?
Que pretende do estado que procura?
Não vê, no sacrifício que fazeis,
Que nenhuma será sua ventura,
Quanto perde, o que perco e o que perdeis?
Força é que seja cego e surdo viva...
Surdo – às tormentas a que se conduz,
Cego – ao brilho do bem de que nos priva.
Ou seja um mau, ou um louco, alma sem luz,
Que persistindo em vos tornar cativa,
Toma uma cruz pior que a nossa cruz.
Entretanto, a mulher que amara e amava ainda, não o esquecia. Antes o afagava e animava a aproximar-se. Foi quando Annibal teve que vencer a forte tentação. Mas venceu. Nesse momento compôs um dos sonetos que mais traduzem a sua grandeza moral:
CONSELHO
Não torneis a dizer que não é crime
Sonhar satisfazer paixão tamanha.
Ao me dizerdes, quanto vos estranha
Meu coração, e que pesar o oprime!
Quer o dever a que hoje me acompanha,
Vosso respeito, e que eu a preze e estime.
E, se um tal sacrifício nos redime
Subamos sempre essa áspera montanha.
Levai comigo a sorte que nos veio...
Sacrifiquemo-nos, porque isto implica
A nossa glória e o benefício alheio.
Sofrermos puros, mais nos dignifica,
E mais cresce e mais fulge o amor no seio
De quem pelo dever se sacrifica.
Tal foi Annibal Theophilo, o glorioso poeta que numa tarde radiosa, consagrada às coisas do espírito, em plena pujança do vigor e do talento, foi violentamente precipitado para a morte. (Jorge Jobim)
E acodem-me à lembrança os versos de Vigny:
“Heureux celui qui meurt et qui ferme les yeux
Tout éblouis encore de rêves florieux.”
Este é o título de artigo de Jorge Jobim, publicado na edição de 25/12/1920 de Ilustração Brasileira. Segue-se o texto completo:
Annibal Theophilo da Silva, tão conhecido pelo soneto A Cegonha e tão barbaramente sacrificado numa tragédia sem brilho, deixou-nos excelentes versos, enfeixados em volume, a que intitulou com extrema modéstia Rimas.
Mas, que é esse livro? É a história de uma grande e desgraçada afeição que encheu de fel a mocidade robusta de Annibal Theophilo. Em vida sua, nenhum de nós, seus íntimos, tinha o direito de trazer a público as mágoas que se lhe depararam na vida atribulada; mas, hoje, ele é morto, é mister que os que com ele conviveram e guardaram as confissões de sua alma aflita, forneçam dados seguros para em juízo definitivo aquilatar-lhe da nobreza do caráter e do valor da obra.
Adolescente ainda, os fermentos de sua índole buliçosa levedaram num grande afeto. Era tempo. Esse avatar do Cid Campeador não se compreenderia sem uma Chimena. Mas, ai dele! Se tivesse como fidalgo espanhol de combater ao sol das batalhas ou com D. Quixote, de lança em riste, desfazer agravos e libertar donzelas oprimidas, seria, certamente, vencedor. Imaginai, porém, durante um momento D. Rodrigo de Bivar em peleja contra os mesquinhos interesses coligados, pequenas intrigas de família, subalternas razões de fortuna, e vereis como sua glória empalidece e se apaga, como tudo isso está em desacordo com a nobreza do coração e a virilidade do caráter. Figurai-vos um instante o desbaratador dos mouros ressurreto nos dias de agora e vereis que não poderia ter subsistido à míngua de ambiente. Assim aconteceu com Annibal. Correspondido na afeição, o cavaleiro deu lugar ao poeta e este cantou em quadras comovidas os encantos de sua eleita.
Foi feliz durante alguns anos; a ventura acompanhou-o muito mais tempo do que a um certo califa que dizia ter sido feliz apenas quatorze dias em toda a vida. Mas, quando os pais de sua preferida perceberam que se não tratava de uma inclinação passageira, entraram a hostilizar com desusada tenacidade o já arraigado amor, por eles festejado e animado no início. Foram invocados vexatórios argumentos de haveres e posição social. Theophilo retraiu-se com amargura. Entrementes, a família da moça com ela instava e quebrava lanças para faze-la casar com um jovem primo, rico e portador de um título.
MÊS DE MAIO
O compromisso que ante o Juiz e a Igreja
Prestastes e nos fez tão separados,
Jamais há de impedir que eu sempre esteja
A memorar os dias já passados.
Pois, memora-los, é buscar motivo
Para saudar-vos como antigamente.
Porque viveis, é que inda sonho e vivo,
E, sonho e vivo neste amor somente.
Hoje Maio começa. Maio!... Dantes,
Como o recordo bem! Hoje, Senhora,
Eu ia, o mais ditoso dos amantes,
Levar-vos sempre uma lembrança, e agora,
Desta fria distância ilimitada,
Só vos posso ofertar meu pensamento...
E deserta de rosas minha estrada,
Só tenho goivos neste isolamento.
Meu pensamento... (Que ele sempre guarde
E preze a glória de se ver cativo,
Sem que impuro desejo algum aguarde
Satisfazer nas sombras em que vivo).
Annibal, com grande abnegação, nobremente digno, concitou-a a que obedecesse à vontade paterna, talvez para por em prova o grau de afeição que ela lhe tinha. Mas, essas experimentações são perigosas com as Chimenas de hoje; esta, vacilante, sem energia, deixou que outros resolvessem do seu destino e, por satisfazer as exigências paternas, acabou por aceitar o noivo que lhe impunham, levando para o casamento muito amor ainda por Theophilo e nenhum pelo marido. Este ato leviano decidiu da sorte do poeta. Casou ele também pouco depois, não direi por despeito – era bastante forte para se preservar dessas fraquezas – mas talvez por desesperação. Sepultou-se assim numa existência sem brilho... Foi mais ou menos por essa época que escreveu este soneto:
CEGO E SURDO
Que espécie de homem de vontade escura
É esse a que vos forçam que baixeis,
Que sabe que o aceitais com amargura,
Que sabe que vos quero e me quereis?
Que pretende do estado que procura?
Não vê, no sacrifício que fazeis,
Que nenhuma será sua ventura,
Quanto perde, o que perco e o que perdeis?
Força é que seja cego e surdo viva...
Surdo – às tormentas a que se conduz,
Cego – ao brilho do bem de que nos priva.
Ou seja um mau, ou um louco, alma sem luz,
Que persistindo em vos tornar cativa,
Toma uma cruz pior que a nossa cruz.
Entretanto, a mulher que amara e amava ainda, não o esquecia. Antes o afagava e animava a aproximar-se. Foi quando Annibal teve que vencer a forte tentação. Mas venceu. Nesse momento compôs um dos sonetos que mais traduzem a sua grandeza moral:
CONSELHO
Não torneis a dizer que não é crime
Sonhar satisfazer paixão tamanha.
Ao me dizerdes, quanto vos estranha
Meu coração, e que pesar o oprime!
Quer o dever a que hoje me acompanha,
Vosso respeito, e que eu a preze e estime.
E, se um tal sacrifício nos redime
Subamos sempre essa áspera montanha.
Levai comigo a sorte que nos veio...
Sacrifiquemo-nos, porque isto implica
A nossa glória e o benefício alheio.
Sofrermos puros, mais nos dignifica,
E mais cresce e mais fulge o amor no seio
De quem pelo dever se sacrifica.
Tal foi Annibal Theophilo, o glorioso poeta que numa tarde radiosa, consagrada às coisas do espírito, em plena pujança do vigor e do talento, foi violentamente precipitado para a morte. (Jorge Jobim)
E acodem-me à lembrança os versos de Vigny:
“Heureux celui qui meurt et qui ferme les yeux
Tout éblouis encore de rêves florieux.”
Uma Crônica De Oscar Lopes
É de Oscar Lopes, publicada em O País e no Estado de São Paulo, em 26/6/1915, a seguinte crônica:
Quando, numa roda de amigos, por ocasião de um jantar, agora mais do que nunca inesquecível, troquei as primeiras palavras de cortesia com Annibal Theophilo, já A Cegonha e alguns sonetos camonianos lhe aureolavam o nome de poeta e afirmavam os seus méritos distintos de artista. Jovial por natureza, dotado de uma singular espontaneidade humorística, certamente avivada à sua passagem pela Escola Militar, ele fez o encanto desse jantar e a minha delícia. Eu mal rimava, então, os meus primeiros versos e, embora não fosse muito sensível a diferença entre as nossas idades, já o olhava com admiração respeitosa que me mereceram sempre verdadeiros poetas.
A vida fez-nos amigos depois, e disso eu tirei só motivos de orgulho. Já uma estreita fraternidade espiritual nos ligava – e a quantos outros, Deus louvado! – quando Annibal Theophilo escreveu esta maravilhosa:
PERFEIÇÃO IGNORADA
A Leal de Souza
(Ante um adolescente nadador)
É porque a tua carnação me obriga
Que a lira empunho extático de espanto,
E, em nome da Arte, da Arte heróica e antiga,
Adolescente, as tuas formas canto.
Ver-te, é o Passado ver que te desliga
Das vestes de hoje; é de purpúreo manto
Ao braço, o pé na alvíssima caliga
Ver-te; evidente todo o teu encanto.
Salve, moreno Adônis! Escultura
Que no meu sonho surges dentre vides,
Sublime, brônzeo, mal pisando o solo!
Salve, corpo onde uniu a Formosura
A rijeza dos músculos de Alcides
À deslumbrante perfeição de Apolo!
Soneto de grande esplendor pagão, que lembra o gênio de Benevenuto, esculpindo o bronze célebre, comentava o cronista da Gazeta de Notícias.
Dessa época em diante o artista havia entrado na plena posse dos seus recursos. O seu livro Rimas, editado em Portugal no ano de 1911, ainda que não contenha mais que uma parte da produção do poeta, já traduz esse período de absoluta maturidade. Ao lado dos sonetos camonianos, tão justamente celebrizados, as suas páginas desdobram Vilancetes e Baladas do mais puro lavor, dos mais belos da língua portuguesa.
Seria de certa sorte um alívio para a minha saudade embalar-me à cadência desses versos e passar muitos deles do livro para esta coluna.
A obra por ter saído a lume com muitas incorreções tipográficas, teve uma distribuição restrita e os poemas estão a merecer a mais longa divulgação. Todavia, não desejando ir além de uma certa medida, vou limitar-me a transcrever o soneto Desiludido, do mais delicioso gosto antigo, repassado do mais delicado lirismo:
DESILUDIDO
Já minha pobre vida não se engana
Mais com a esperança vã que era seu guia.
Sois de outro escrava neste infausto dia
Em vez de serdes minha soberana!
Porém quero que veja a turba humana
Em mim um ser diverso do que via:
- O sonhador caído da alegria,
- O forte que de o ser na dor se ufana.
Quero ser para o Mundo, qual me vistes,
Firme no sacrifício a que me lego,
Igual na crueza ao que vos permitistes.
Vingar-me-ei quando a sós, pois, só, não nego,
Como os vencidos frágeis, como os tristes,
Ao triste bem das lágrimas me entrego.
Em dois traços de esboço – o mais que me permite a dor que ainda me punge – era assim o poeta.
E o homem? Ah! O homem não era mais para este século. Foi por um esquecimento do destino que ele viveu no nosso tempo. As suas grandes qualidades íntimas, já tão fora de moda, davam a Annibal Theophilo a configuração moral de um cavalheiro das idades galantes em que havia torneios de gentileza e heroísmo. E o seu imenso coração, aberto a todos os impulsos generosos, também o deslocava de uma época em que a vertigem da vida não permite mais a religião da dor pelo próximo.
Era um bravo, como se era um bravo antigamente, nas idades em que se tecia um madrigal medindo a lâmina de um florete com outro florete. Mas, a sua bravura não era a de um espadachim: era a de um puro herói.
Annibal Theophilo era bravo à maneira de Cyrano, tipo e símbolo da coragem leal. Como Cyrano, Annibal morreu assassinado. (Oscar Lopes)
É de Oscar Lopes, publicada em O País e no Estado de São Paulo, em 26/6/1915, a seguinte crônica:
Quando, numa roda de amigos, por ocasião de um jantar, agora mais do que nunca inesquecível, troquei as primeiras palavras de cortesia com Annibal Theophilo, já A Cegonha e alguns sonetos camonianos lhe aureolavam o nome de poeta e afirmavam os seus méritos distintos de artista. Jovial por natureza, dotado de uma singular espontaneidade humorística, certamente avivada à sua passagem pela Escola Militar, ele fez o encanto desse jantar e a minha delícia. Eu mal rimava, então, os meus primeiros versos e, embora não fosse muito sensível a diferença entre as nossas idades, já o olhava com admiração respeitosa que me mereceram sempre verdadeiros poetas.
A vida fez-nos amigos depois, e disso eu tirei só motivos de orgulho. Já uma estreita fraternidade espiritual nos ligava – e a quantos outros, Deus louvado! – quando Annibal Theophilo escreveu esta maravilhosa:
PERFEIÇÃO IGNORADA
A Leal de Souza
(Ante um adolescente nadador)
É porque a tua carnação me obriga
Que a lira empunho extático de espanto,
E, em nome da Arte, da Arte heróica e antiga,
Adolescente, as tuas formas canto.
Ver-te, é o Passado ver que te desliga
Das vestes de hoje; é de purpúreo manto
Ao braço, o pé na alvíssima caliga
Ver-te; evidente todo o teu encanto.
Salve, moreno Adônis! Escultura
Que no meu sonho surges dentre vides,
Sublime, brônzeo, mal pisando o solo!
Salve, corpo onde uniu a Formosura
A rijeza dos músculos de Alcides
À deslumbrante perfeição de Apolo!
Soneto de grande esplendor pagão, que lembra o gênio de Benevenuto, esculpindo o bronze célebre, comentava o cronista da Gazeta de Notícias.
Dessa época em diante o artista havia entrado na plena posse dos seus recursos. O seu livro Rimas, editado em Portugal no ano de 1911, ainda que não contenha mais que uma parte da produção do poeta, já traduz esse período de absoluta maturidade. Ao lado dos sonetos camonianos, tão justamente celebrizados, as suas páginas desdobram Vilancetes e Baladas do mais puro lavor, dos mais belos da língua portuguesa.
Seria de certa sorte um alívio para a minha saudade embalar-me à cadência desses versos e passar muitos deles do livro para esta coluna.
A obra por ter saído a lume com muitas incorreções tipográficas, teve uma distribuição restrita e os poemas estão a merecer a mais longa divulgação. Todavia, não desejando ir além de uma certa medida, vou limitar-me a transcrever o soneto Desiludido, do mais delicioso gosto antigo, repassado do mais delicado lirismo:
DESILUDIDO
Já minha pobre vida não se engana
Mais com a esperança vã que era seu guia.
Sois de outro escrava neste infausto dia
Em vez de serdes minha soberana!
Porém quero que veja a turba humana
Em mim um ser diverso do que via:
- O sonhador caído da alegria,
- O forte que de o ser na dor se ufana.
Quero ser para o Mundo, qual me vistes,
Firme no sacrifício a que me lego,
Igual na crueza ao que vos permitistes.
Vingar-me-ei quando a sós, pois, só, não nego,
Como os vencidos frágeis, como os tristes,
Ao triste bem das lágrimas me entrego.
Em dois traços de esboço – o mais que me permite a dor que ainda me punge – era assim o poeta.
E o homem? Ah! O homem não era mais para este século. Foi por um esquecimento do destino que ele viveu no nosso tempo. As suas grandes qualidades íntimas, já tão fora de moda, davam a Annibal Theophilo a configuração moral de um cavalheiro das idades galantes em que havia torneios de gentileza e heroísmo. E o seu imenso coração, aberto a todos os impulsos generosos, também o deslocava de uma época em que a vertigem da vida não permite mais a religião da dor pelo próximo.
Era um bravo, como se era um bravo antigamente, nas idades em que se tecia um madrigal medindo a lâmina de um florete com outro florete. Mas, a sua bravura não era a de um espadachim: era a de um puro herói.
Annibal Theophilo era bravo à maneira de Cyrano, tipo e símbolo da coragem leal. Como Cyrano, Annibal morreu assassinado. (Oscar Lopes)
A Opinião De Emílio De Menezes
Entrevistado em São Paulo, tempos depois da morte de Annibal Theophilo, Emílio de Menezes assim se pronunciou sobre o poeta de A Cegonha, tal como consta do livro Emílio de Menezes, O Último Boêmio, de Raimundo de Menezes.
– O excelente, o belo Annibal Theophilo! Não imagina que consternação isso produziu por lá. Um rapaz de alto valor, inteligente, sério e bom... E acrescentava, referindo-se à Sociedade dos Homens de Letras: “Mas até esse fato veio concorrer para solidificar a nossa Associação e ajuntou um novo impulso ao movimento de solidariedade que a Associação está criando entre as rodas intelectuais do Rio. Porque o fim principal que temos em vista é esse – congregar os homens de letras, apagando dissensões, prevenções, intrigas, todas essas “coisinhas” que nada valem, nada produzem, e aborrecem e prejudicam... Essa obra de união e de paz, digna de gente que pensa, recebeu uma notável colaboração na noite do crime. Cerraram-se as fileiras. O enterro de Annibal foi uma apoteose. Ninguém faltou. Em suma: nunca houve no Rio um movimento de solidariedade literária como esse.
Entrevistado em São Paulo, tempos depois da morte de Annibal Theophilo, Emílio de Menezes assim se pronunciou sobre o poeta de A Cegonha, tal como consta do livro Emílio de Menezes, O Último Boêmio, de Raimundo de Menezes.
– O excelente, o belo Annibal Theophilo! Não imagina que consternação isso produziu por lá. Um rapaz de alto valor, inteligente, sério e bom... E acrescentava, referindo-se à Sociedade dos Homens de Letras: “Mas até esse fato veio concorrer para solidificar a nossa Associação e ajuntou um novo impulso ao movimento de solidariedade que a Associação está criando entre as rodas intelectuais do Rio. Porque o fim principal que temos em vista é esse – congregar os homens de letras, apagando dissensões, prevenções, intrigas, todas essas “coisinhas” que nada valem, nada produzem, e aborrecem e prejudicam... Essa obra de união e de paz, digna de gente que pensa, recebeu uma notável colaboração na noite do crime. Cerraram-se as fileiras. O enterro de Annibal foi uma apoteose. Ninguém faltou. Em suma: nunca houve no Rio um movimento de solidariedade literária como esse.
Rimas – Musa Erradia – Folhas de um Poema. Este foi o único livro do poeta Annibal Theophilo. Publicado em Portugal, pela Livraria Portuense – Lopes & Cia. Sucê. Editor – Rua do Almada, 119 – Porto, em 1911. Em 1915 a Imprensa Literária do Rio de Janeiro anunciava a reedição de Rimas e a publicação de um novo trabalho do poeta, Branca Flor, fora do alcance da família desde a morte do autor de A Cegonha. Jamais se soube do paradeiro dessa obra. O Rimas apareceu no Rio de Janeiro, quando o poeta voltou de Portugal, em 1912, e aqui, em vista de os muitos erros de impressão, resolveu o escritor distribuir quase um milheiro entre os seus muitos amigos.
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TRECHOS DE NOTAS DA IMPRENSA SOBRE O LIVRO RIMAS – 1912
Correio Do Norte – Manaus (7/01/1912) Mas, é sobretudo nos decassílabos e nos setessílabos que a musa de Theophilo parece sentir-se mais à vontade. Aí o poeta canta alto a sua dor, nos diz as suas descrenças e as suas desilusões; e o seu verbo, tocado de uma vaga, indefinível tristeza – reveladora talvez de um estado psíquico – tem ondulações blandiciosas de vagas indolentes, murmúrios, queixumes de um arroio encantado, perdido no seio de alguma floresta obscura. João do Lago O País (8/05/1912) Há no livro de que me ocupo três ou quatro baladas clássicas, que por si sós bastariam para colocar Annibal Theophilo na primeira fila dos poetas da sua geração. “Saudade” é de uma beleza e de uma intensidade emotiva pouco vulgares. Anibal Amorim Revista Era Nova (Maio de 1912) Nunca, nenhuma obra literária refletiu tão fielmente, tão perfeitamente, a individualidade que a produziu, como a obra de Annibal Theophilo. Não tem nada mais a fazer além de abrir e ler atenciosamente o seu livro, que quiser averiguar as suas qualidades, as suas tendências, os seus pendores, o seu feitio pessoal, o seu caráter, o seu modo de encarar o mundo, a sua maneira de ver a vida. Os seus versos não são apenas um produto de visão iluminada, mas também o reflexo integral de uma personalidade. Há em todos eles, e de um modo tal, a expressão moral do homem, que não fora preciso conhecer o poeta, para ajuizar dos sentimentos superiores que o integram. O seu livro é a sua imagem, a sua imagem como artista, emergindo do sonho, a sua imagem como indivíduo, transitando a sociedade. |
Posso, por isso, afirmar que o seu livro é, antes de tudo, o reflexo integral de sua individualidade; posso, por isso, dizer que a sua obra é uma das mais sinceras e mais sentidas das que já escreveram entre nós, o que equivale assegurar que essa obra tem, pelo menos, uma face legítima, verdadeira, perfeita, de grande arte. (Theophilo de Albuquerque)
Correio Do Norte – Manaus (21/05/1912)
Há em Annibal Theophilo duas entidades – a espontânea, aquela que no-lo dá prazenteiro, sadio de corpo e sadio de alma, e a que a fatalidade o faz adquirir por desenganos sucessivos e que o faz dotado de um cepticismo delicado e agradável. P.C.
Correio Da Manhã (13/05/1912)
Há em todos esses versos um sopro de lirismo forte e perfumado, que filia o autor de Rimas à descendência e à linguagem dos velhos poetas sentimentais, da escola de Camões e de Petrarca. Osório Duque Estrada
Gazeta De Notícias (17/05/1912)
Sim – esse Annibal Theophilo é realmente prodigioso, pela sua aguda personalidade antes de tudo, pelas admiráveis qualidades de emoção, de arte, de medida e de visão.
O Malho (11/05/1912)
Se Annibal Theophilo não fosse já um nome reputado de poeta, inscreve-lo-ia como tal o seu magnífico livro Rimas. Quer na primeira parte do trabalho Musa Erradia, quer na parte final Folhas de um Poema, há obra de um artista precioso, que ao lavor implacável da forma, junta a poesia espontânea e encantadora de um verdadeiro poeta.
Jornal Do Comércio (13/05/1912)
Na primeira parte há mais força e decisão nos sentimentos, um pouco mais de intensidade na emoção, uns vestígios de mais amadurecido pensar, tudo envolto em descrença. Mas em ambas as partes pulsa uma grande emotividade artística, que é o maior característico de Annibal Theophilo, auxiliado por uma clareza de expressão e uma suavidade de ritmo, dignas de um verdadeiro poeta. Gustavo Barroso
Correio Do Norte – Manaus (21/05/1912)
Há em Annibal Theophilo duas entidades – a espontânea, aquela que no-lo dá prazenteiro, sadio de corpo e sadio de alma, e a que a fatalidade o faz adquirir por desenganos sucessivos e que o faz dotado de um cepticismo delicado e agradável. P.C.
Correio Da Manhã (13/05/1912)
Há em todos esses versos um sopro de lirismo forte e perfumado, que filia o autor de Rimas à descendência e à linguagem dos velhos poetas sentimentais, da escola de Camões e de Petrarca. Osório Duque Estrada
Gazeta De Notícias (17/05/1912)
Sim – esse Annibal Theophilo é realmente prodigioso, pela sua aguda personalidade antes de tudo, pelas admiráveis qualidades de emoção, de arte, de medida e de visão.
O Malho (11/05/1912)
Se Annibal Theophilo não fosse já um nome reputado de poeta, inscreve-lo-ia como tal o seu magnífico livro Rimas. Quer na primeira parte do trabalho Musa Erradia, quer na parte final Folhas de um Poema, há obra de um artista precioso, que ao lavor implacável da forma, junta a poesia espontânea e encantadora de um verdadeiro poeta.
Jornal Do Comércio (13/05/1912)
Na primeira parte há mais força e decisão nos sentimentos, um pouco mais de intensidade na emoção, uns vestígios de mais amadurecido pensar, tudo envolto em descrença. Mas em ambas as partes pulsa uma grande emotividade artística, que é o maior característico de Annibal Theophilo, auxiliado por uma clareza de expressão e uma suavidade de ritmo, dignas de um verdadeiro poeta. Gustavo Barroso
DEPOIMENTOS
Heitor Lima - Repercussões
Heitor Lima, o delicado autor de Primeiros Poemas, fez longa análise sobre a poesia de Rimas no seu artigo Repercussões. Heitor Lima era “um advogado desassombrado, temido”. Jornalista ardoroso, delegado, divorcista corajoso nas tribunas da Câmara, defensor da legislação sobre menores e autor de vários livros jurídicos, mereceu da sociedade respeitoso reconhecimento.
Transcreva-se o artigo, publicado em 18 de setembro de 1913:
“Há muitos anos passados emigrava ele para as regiões da Amazônia, em busca de fortuna. E voltou ao Rio, tão pobre como quando partira, e com oito anos de menos; mas animado da mesma chama sagrada, deslumbrado de ideal e amando ardentemente a vida, aspirando ao conforto não como um fim na existência animal, mas como uma condição apropriada à integral expansão de seus sonhos, à florescência opulenta de seus versos perfumados.
Annibal Theophilo, não por espírito de imitação, mas por uma questão de temperamento, referiu sua arte aos moldes camonianos, dando, assim, ao seu intenso sentimento lírico, uma expressão de requinte fidalgo no qual reside o segredo do prestígio de que gozam os poetas de amor nos círculos femininos.
Temperamento apaixonado e turbulento, impressionável e impetuoso, Annibal ama a natureza com a condição de personaliza-la, animiza-la, de modo que a grande fonte colabore com o homem no amor do homem, forneça à projeção conceptiva de seu ideal de amor as emoções complementares, identificando-se à mulher e continuando-a sob mil formas variadas.
Ah! Mas nem sempre a natureza, que lhe desaltera a sede d’água, mata a sede de sonho em que se tantaliza o artista.
E de fato, para as almas como a de Annibal, sonhar é sofrer, é arder, é consumir-se.
Dotado de um caráter puro, cultivando todos os bons sentimentos, o poeta tem desesperos de castidade e crise de piedade que afluem em versos de uma grande intensidade moral e afetiva:
“Sofremos puros mais nos dignifica,
E mais cresce e mais fulge o amor no seio
De quem pelo dever se sacrifica.”
As suas tristezas, se bem que profundas, são veladas, em seus versos, sugerindo, por isso mesmo, harmônicos de um vivo efeito que perdura:
“Tudo fizemos pela castidade;
Não por satisfazer vãos preconceitos,
Nem por vaidosa, hipócrita piedade,
Mas por nós, por cumprir altos preceitos,
Conservando serena a majestade
Do amor, eterno e triste em nossos peitos.”
Esses versos são grandes, e Camões teria honra de assina-los. O poeta quer o Ideal sempre adiante, sempre no alto, quer a mulher com a condição de que a mulher seja anjo:
“...Senhora,
Não desçais de anjo a mulher
O coração não o quer.
...E mil vezes quero a morte
A querer-vos de outra sorte.
Anjo ficar; da mulher
Meu coração nada quer.”
O poeta reconhece que se faz mister uma grande firmeza para a resistência; uma paixão violenta inflama ambos:
“...Mas poder mais forte clama
Que vos quer anjo; mulher
O coração não vos quer.”
Se a mulher descer de anjo, extinguir-se-á a paixão: a alma aspira apenas à encarnação do Perfeito: seria execrante transigir:
“...Eu – de novo o anjo buscando,
Vós – reduzida a mulher...
Isso o coração não quer.”
Ela sofreria então a dor sem remédio de ouvir o poeta exclamar:
“...Onde está o anjo, mulher?
Meu coração não vos quer.”
Aí está como o poeta ama: quer na mulher asas de anjos, aceita o sacrifício, ratifica a renúncia. Para isso conta com o domínio que exerce sobre si:
“...Triste daquele que se não pertence!”
As quatro Orações são tudo o que existe de mais delicado, terno, emotivo:
“... Senhora minha que viveis na Terra
Glorificado seja o Vosso Nome...
... Não me deixeis cair no Vosso Olvido...”
Esta seria o Padre Nosso, a segunda, a Ave Maria, termina:
“... Volvei os Olhos às minhas dores,
Supremo Bem,
Agora e na hora da minha morte,
Amém.”
A terceira oração, Salve Rainha, é uma exortação eloqüente:
“...Das Vossas Asas misteriosas
Sobre a crueza desta ínvia estrada,
Em luar e flores, para minh’alma,
Desci a Calma,
Bem prometida por Vossa Vida
À minha vida.
...Que me ilumine Vossa Virtude
Por merecermos o nosso Sonho, Amém.”
A última oração, o Credo, começa com um grito de entusiasmo:
“...Creio em minha Esperança Fervorosa”
E acaba com esta maravilhosa música:
“...Creio no Vosso Coração, Senhora;
Na santificação dos Vossos Sofrimentos;
Na nossa União dentro da mesma Aurora;
Na extinção dos meus lívidos tormentos
Que há de ser Luz e fel que o meu cálix contém;
Que vive em nós o Amor Eterno. Amém.”
Para dar uma idéia do que é o autor das Rimas, como inspiração, sentimento, surto, não vão precisar mais citações.
Em outro lugar desta folha vai publicado o seu soneto A Cegonha, uma das mais célebres poesias, traduzida hoje em quase todas as línguas.” (Heitor Lima)
Anísio Jobim
Gloriosa figura de poeta e de campeador. Residiu no Amazonas de 1903 a 1912. Quando aqui chegou, já o seu nome recebera a consagração dos mais eminentes críticos da Metrópole. Fora amigo íntimo de Bilac e de Coelho Neto. Em Manaus, num minuto, se tornou ídolo de sua geração. Como homem, no ímpeto das atitudes, na bravura desordenada, nos gestos de nobreza e no destemor das ações, era um Cid corneliano. Como poeta, os seus poemas – fontes luminosas de emoção sensual e artística – refletiam as alegrias superiores da vida.
Rimas, o seu primeiro e único livro de versos, é uma evolução sutil e fugitiva de seu espírito, que mal revela a flama do animador.
Lazinha Luís Carlos (1962)
A lembrança de Annibal Theophilo se mistura às outras de minha infância e sempre que volto ao território fluido da saudade, onde me encontro com as minhas raízes, o poeta nele figura, embora meio impreciso. Impreciso porque, na verdade, nunca o conheci.
Habitávamos São Paulo e eu era pequenina quando o grande vate foi assassinado. Mas Annibal Theophilo é daqueles que não podem morrer, que continuam, deixando um rastro de vivência por onde andaram. Seu nome permaneceu extraordinariamente vivo no círculo onde o fulgor do seu talento penetrou. Esse nome era tão repetidamente pronunciado lá em casa que cheguei a ter a impressão de haver convivido com o poeta.
Quando nos mudamos para o Rio, já ele não pertencia mais a este mundo. Mas, na roda literária formada em torno de Luís Carlos, meu Pai, estava sempre presente, admirado, relembrado. Recitavam-lhe os versos, e meu Pai não se cansava de ratificar sua admiração pelo autor de A Cegonha.
Fui crescendo, se não alcancei vê-lo, em compensação tive a sorte de conhecer a sua viúva e a sua filha – aquela bela e meiga Elisinha, que recordo com particular carinho. Freqüentaram nossa casa. Eram da simpatia de todos. Anos depois, mais recentemente, nas lides literárias tive ocasião de travar conhecimento, também, com Arnaldo Rodrigues, o neto do poeta e filho de Elisinha. Como vêem, quase posso dizer que conheci Annibal Theophilo, pois além do seu estro, foi-me dado aproximar- me do seu desdobramento na vida: a sua família.
Eu, que posso dizer ter aberto os olhos ao mundo num cenário de literatura, tinha pelos “Grandes” das nossas letras uma espécie de comovido respeito, que felizmente conservo. Não sou dos que renegam os antigos valores, para trocá-los pelos de hoje. Aceito alguns novos com o mesmo entusiasmo com que mantenho o meu culto pelos de outrora. Minha admiração literária é como a encenação de Os Persas, tragédia de Ésquilo, ou como os baixos-relevos de Persépolis: aqueles vultos ilustres, firmes na sua estrutura de pedra, imponentes e austeros, lá estão eternos na sua imutabilidade. Entre eles, Annibal Theophilo.
Tal como meu Pai, ele morreu tão moço! Mas, tenho para mim que as criaturas humanas vêm ao mundo com uma missão de bondade e beleza. Enquanto não tiverem completado a soma de boas ou belas ações que lhes cabe realizar, não podem deixar a terra. Algumas há que permanecem aqui longos anos, dando cumprimento, aos poucos, aos atos caritativos e generosos que outros executam mais rapidamente. A estes é dado o prêmio de poder partir mais cedo. O fato de morrer moço ou velho é, pois, uma questão de ritmo, de andamento, na execução das boas obras. Meu Pai, porque realizou em tão pouco tempo, tanta bondade e tanta beleza, foi logo chamado!
“Ele e Annibal Theophilo foram bons mais depressa”... (Lazinha Luís Carlos)
Carlos Maul (1961)
Antes de vê-lo em pessoa já o conhecia e admirava através da poesia. Pertencia a uma geração anterior à minha. Dele andava de boca em boca um soneto famoso: A Cegonha, composição antológica. A juventude o repetia e lhe fixava os versos. E ninguém esquecia aquele final de pensamento profundo:
...a dúvida humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.
Sempre que havia oportunidade, o A Cegonha era citado com entusiasmo ao lado de alguns outros primores como Os Cisnes, de Júlio Salusse; o Olhos Tristes, de Luiz Edmundo, o Mal Secreto, de Raimundo Correia, o Ouvir Estrelas, de Olavo Bilac, A Vingança da Porta, de Alberto de Oliveira, A Carolina, de Machado de Assis. A página de Annibal resistia à comparação com as desses poetas eminentes.
Quando A Cegonha começou a circular nas revistas de todo o Brasil, Annibal Theophilo andava longe daqui, ora no estrangeiro, ora no extremo sul, ora na Amazônia. Os amigos íntimos, como Leal de Souza, entre vários, recordavam-nos nas tertúlias da redação de Careta, e os mais moços se emocionavam com a evocação que ouviam de suas andanças cavalheirescas pelo mundo. O sangue espanhol que lhe fervia nas veias, impelia-o a uma vida movimentada e inquieta, de romantismo palpitante. Assim, todos o conheciam através dos versos e através da crônica verbal dos que com ele privara, até que um dia a sua presença física veio confirmar o que de seu tipo sugestivo trazíamos na imaginação.
A primeira vez que vi Annibal Theophilo foi aí por volta de 1913, na casa de Coelho Neto, na rua do Rozo, no bairro tranqüilo das Laranjeiras. Aos domingos reunia o mestre uma dezena de amigos, gente de todas as idades, numa comovente intimidade que encantava a juventude diante daquela figura angulosa e simpática que nos lembrava o vulto mitológico de Anteu, como que a retemperar-se das forças fatigadas na luta cotidiana nos contatos com os que lhe davam a ilusão da terra moça. Eu percebi que o prodigioso criador do Rei Negro se sentia em atmosfera propícia ao ter, em torno de si, para diálogos magníficos, os que o amavam com ternura e se misturavam com seus filhos. Era um autêntico salão literário onde as idéias mais contraditórias tinham curso, e do qual saíamos sempre com a certeza que aprendêramos algo de novo das falas comunicativas do anfitrião admirável. Foi ali que pude compreender melhor o romancista de minhas primeiras leituras. Diziam-no um devorador de dicionários, um rebuscador de termos difíceis, um arrumador paciente de vocábulos. E Neto era exatamente o contrário dessa lenda. Falava como escrevia, numa espontaneidade impressionante que desmentia o conceito errado em que era tido. Ouvi-lo a narrar um episódio era o mesmo que lê-lo nos seus livros numerosos. O que ele possuía, isso sim, era uma esplêndida cultura humanística, um domínio absoluto da língua, qualidades que lhe permitiam escapar da vulgaridade sem nunca desprezar a simplicidade. E Coelho Neto nesses encontros dominicais inesquecíveis, soube ser um traço de ligação entre os da geração vitoriosa de que ele era ponto culminante, e os da que surgia com ímpetos de continuar-lhe a trajetória luminosa.
Annibal Theophilo viveu ali os encantos de um lar perfeito. Integrou-se no ambiente como se da família que venerava. Devia, então, andar pelos quarenta e poucos anos. Pelo menos aparentava essa idade na sua compleição atlética. Não lhe dei muita atenção a esse aspecto porque o que se não cogitava naquele meio era de certidão de nascimento, pois o mais velho que centralizava as reuniões parecia, no espírito, o mais jovem de todos. Annibal se mostrava aberto de alma, despido de vaidades, feliz entre os felizes, entusiasta, de gestos largos que imediatamente punham à vontade quem com ele se entendesse à primeira vista. Acrescente-se, aliás, que para isso contribuía o ar da casa, ar de afeto que se respirava a longos haustos.
Tenho para mim que foi na casa de Coelho Neto que se tratou, inicialmente, de fundar uma sociedade de literatos que não fosse apenas de grêmio festivo, e sim um núcleo de defesa material dos escritores. De acordo com velhas recordações que me ficaram dessas tardes da rua do Rozo, pensou-se em criar no Brasil uma réplica da “Société de Gens de Lettres” de Paris, a vigilante instituição zeladora dos direitos autorais de seus associados. Coelho Neto e Bilac, com a colaboração de Bastos Tigre, que redigiu os estatutos em normas de sindicato profissional, foram os pioneiros, e a eles se vincularam os demais que vieram a fundar a entidade que teria a sua sede num quinto andar da rua Gonçalves Dias, bem ao lado da Confeitaria Colombo.
A tela que Luiz Edmundo legou à Academia Brasileira de Letras, pintada por Marques Júnior, reproduz de uma fotografia da época uma de nossas reuniões depois de instalada a sociedade. O grupo é de 1915.
Essa sociedade não conseguiu realizar o sonho dos que a idearam, porque mais fortes do que eles eram as dissensões que lavravam no seu seio, onde raros compreendiam a necessidade de não confundir o interesse econômico ligado a trabalho intelectual com as graduações arbitrárias dos méritos ou deméritos de cada um de seus componentes. (Carlos Maul)
Destinos Paralelos: Theophilo De Albuquerque
Eu fui dos que tiveram a ventura de conhecer Annibal Theophilo de perto, por isso mesmo que, também, daqueles que mais choraram ao sabe-lo morto. Encontramo-nos, um dia, no Amazonas, no grande deserto das águas, em meio ao cenário imenso, que por sua grandeza, sua majestade, sua sensação de infinito, tem a virtude divina de aproximar os homens. Encontramo-nos, e o nosso encontro foi de dois velhos amigos. A miragem do deserto nos havia atraído, de pontos diferentes, em idades diferentes; a solidão do deserto aproximou-nos, como a dois extraviados nos próprios destinos.
Estávamos no exílio, conforme a sua própria expressão, quando, mais tarde, ao enviar-me o seu livro, falou-me “nas horas agrestes e escuras do nosso exílio no Amazonas”; estávamos no exílio e essa circunstância fez com que, em pouco tempo, nos conhecêssemos completamente um ao outro. Dissemos um ao outro as nossas queixas da vida e a felicidade que ainda esperávamos dela. Ele ficou sabendo de toda a minha história, mais curta do que a sua doze anos, mas já entremeada de páginas fortes e tristes; eu fiquei no conhecimento de toda a sua vida, que já era, àquele tempo, uma viva expressão de heroísmo forte, de drama intenso e de beleza clara.
Deixei o exílio para não morrer. Separamo-nos. Dois anos depois o destino o trazia novamente ao Rio, onde eu já me encontrava. Aqui, durante quatro anos, continuou, com a mesma amplitude, o sincero entendimento amigo das nossas almas.
Tive conhecimento de toda a extensão das suas qualidades, de todo o apuro do seu caráter, de toda a superioridade do seu coração, de toda a sua nobreza, de linhas suaves e severas.
De Annibal Theophilo ficou-me, por conseguinte, como expressão moral, a noção mais perfeita e mais vasta! (Theophilo De Albuquerque)
Margarida Lopes De Almeida (1962)
Apaixonada pela Poesia desde criança, meus pais orientavam a escolha de minhas leituras e a formação do meu repertório incipiente, apontando-me a beleza oculta ou transparente dos versos que me davam.
Foi assim que um dia me puseram nas mãos o mais célebre soneto de Annibal Theophilo – A Cegonha.
Na tarde fatídica de sua morte estive no salão do Jornal do Comércio em companhia de minha tia Adelina Lopes Vieira, poetisa, ao lado de quem apareço em um instantâneo publicado no Fon-Fon, na semana seguinte à do drama. Tendo sido das primeiras pessoas a chegar, pudemos ficar na primeira fila das cadeiras e ver e ouvir de perto o Poeta na sua última hora de vida. Recitou uma só poesia – não me lembro se o soneto – A Ausente.
Terminada a “Hora Literária”, voltei diretamente para casa, em Santa Teresa. O escritor português Alberto d’Oliveira, cônsul de Portugal no Rio, grande amigo nosso, deveria jantar conosco. Além dele, a esposa e o casal João Luso. Haviam chegado todos, menos Alberto d’Oliveira. Minha mãe inquietara-se com o seu desusado atraso. Chegou pálido, nervoso, ainda sob o abalo provocado pela tragédia a que assistira. Lembro-me muito bem da comoção estupefata com que todos o ouvimos e da mágoa que pairou no decorrer do jantar que deveria ser festivo.
Morrera um Poeta! (Margarida Lopes De Almeida)
Antenor Nascentes (1962)
Tenho em meu caderno de sonetos escolhidos, a obra de Annibal Theophilo, A Cegonha, um dos mais perfeitos e belos sonetos da literatura brasileira.
Renato Alvim (Novembro de 1961)
Um homem forte na verdadeira acepção da palavra, moral e fisicamente forte. Conheci-o no antigo “Café Papagaio”, numa roda onde estavam Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho, Sarandy Raposo, José Saturnino de Brito, José do Patrocínio Filho. Annibal Theophilo entrara no Café e ao vê-los, aproximou-se da mesa. Foi, então, que me apresentaram a ele. Nossas relações não foram íntimas, mas amistosas. Sua prosa era encantadora.
Rodrigo Otávio Filho (1962)
Lembro-me de sua bela figura e de sua forte personalidade. Conheço e admiro sua obra poética de alto teor. Sua poesia tem beleza e profundidade. Foi muito louvado pelos seus contemporâneos.
Mansueto Bernardi (3/1/1962)
O poeta Annibal Theophilo não foi esquecido por mim nem por Eduardo Guimarães. Adiantando-lhe, todavia, que entre os anos de 1915 e 1920, Eduardo Guimarães e eu andávamos trabalhando na elaboração de uma antologia poética do Rio Grande do Sul e que nesse trabalho, nunca concluído e até agora inédito, A.T. comparece com 7 composições: Mater, Palavras de um Forte, A um Adolescente Nadador, A Cegonha, À Beira do Abismo, Meã Máxima Culpa e Vilancete. Relendo agora os originais desse florilégio, verifico existirem, de fato, nele, algumas obras-primas.
Álvaro Moreyra (18 de julho de 1962)
Sei que Annibal nasceu, ao fim da Guerra do Paraguai, no Forte de Humaitá. Criou-se em Porto Alegre. Por todos os gaúchos sempre foi tido por gaúcho. Com muita honra para o Rio Grande do Sul...
Jorge Jobim
Annibal Theophilo herdara o cavalheirismo heróico, o culto pelas atitudes dignas, o espírito de combatividade, o desprezo superior pelos pusilânimes. Foi, talvez, por possuir esse conjunto admirável de qualidades, que o Rio Grande foi sempre a pátria de eleição: não disfarçava nunca o prazer que sentia em se dizer rio-grandense.
Heitor Lima - Repercussões
Heitor Lima, o delicado autor de Primeiros Poemas, fez longa análise sobre a poesia de Rimas no seu artigo Repercussões. Heitor Lima era “um advogado desassombrado, temido”. Jornalista ardoroso, delegado, divorcista corajoso nas tribunas da Câmara, defensor da legislação sobre menores e autor de vários livros jurídicos, mereceu da sociedade respeitoso reconhecimento.
Transcreva-se o artigo, publicado em 18 de setembro de 1913:
“Há muitos anos passados emigrava ele para as regiões da Amazônia, em busca de fortuna. E voltou ao Rio, tão pobre como quando partira, e com oito anos de menos; mas animado da mesma chama sagrada, deslumbrado de ideal e amando ardentemente a vida, aspirando ao conforto não como um fim na existência animal, mas como uma condição apropriada à integral expansão de seus sonhos, à florescência opulenta de seus versos perfumados.
Annibal Theophilo, não por espírito de imitação, mas por uma questão de temperamento, referiu sua arte aos moldes camonianos, dando, assim, ao seu intenso sentimento lírico, uma expressão de requinte fidalgo no qual reside o segredo do prestígio de que gozam os poetas de amor nos círculos femininos.
Temperamento apaixonado e turbulento, impressionável e impetuoso, Annibal ama a natureza com a condição de personaliza-la, animiza-la, de modo que a grande fonte colabore com o homem no amor do homem, forneça à projeção conceptiva de seu ideal de amor as emoções complementares, identificando-se à mulher e continuando-a sob mil formas variadas.
Ah! Mas nem sempre a natureza, que lhe desaltera a sede d’água, mata a sede de sonho em que se tantaliza o artista.
E de fato, para as almas como a de Annibal, sonhar é sofrer, é arder, é consumir-se.
Dotado de um caráter puro, cultivando todos os bons sentimentos, o poeta tem desesperos de castidade e crise de piedade que afluem em versos de uma grande intensidade moral e afetiva:
“Sofremos puros mais nos dignifica,
E mais cresce e mais fulge o amor no seio
De quem pelo dever se sacrifica.”
As suas tristezas, se bem que profundas, são veladas, em seus versos, sugerindo, por isso mesmo, harmônicos de um vivo efeito que perdura:
“Tudo fizemos pela castidade;
Não por satisfazer vãos preconceitos,
Nem por vaidosa, hipócrita piedade,
Mas por nós, por cumprir altos preceitos,
Conservando serena a majestade
Do amor, eterno e triste em nossos peitos.”
Esses versos são grandes, e Camões teria honra de assina-los. O poeta quer o Ideal sempre adiante, sempre no alto, quer a mulher com a condição de que a mulher seja anjo:
“...Senhora,
Não desçais de anjo a mulher
O coração não o quer.
...E mil vezes quero a morte
A querer-vos de outra sorte.
Anjo ficar; da mulher
Meu coração nada quer.”
O poeta reconhece que se faz mister uma grande firmeza para a resistência; uma paixão violenta inflama ambos:
“...Mas poder mais forte clama
Que vos quer anjo; mulher
O coração não vos quer.”
Se a mulher descer de anjo, extinguir-se-á a paixão: a alma aspira apenas à encarnação do Perfeito: seria execrante transigir:
“...Eu – de novo o anjo buscando,
Vós – reduzida a mulher...
Isso o coração não quer.”
Ela sofreria então a dor sem remédio de ouvir o poeta exclamar:
“...Onde está o anjo, mulher?
Meu coração não vos quer.”
Aí está como o poeta ama: quer na mulher asas de anjos, aceita o sacrifício, ratifica a renúncia. Para isso conta com o domínio que exerce sobre si:
“...Triste daquele que se não pertence!”
As quatro Orações são tudo o que existe de mais delicado, terno, emotivo:
“... Senhora minha que viveis na Terra
Glorificado seja o Vosso Nome...
... Não me deixeis cair no Vosso Olvido...”
Esta seria o Padre Nosso, a segunda, a Ave Maria, termina:
“... Volvei os Olhos às minhas dores,
Supremo Bem,
Agora e na hora da minha morte,
Amém.”
A terceira oração, Salve Rainha, é uma exortação eloqüente:
“...Das Vossas Asas misteriosas
Sobre a crueza desta ínvia estrada,
Em luar e flores, para minh’alma,
Desci a Calma,
Bem prometida por Vossa Vida
À minha vida.
...Que me ilumine Vossa Virtude
Por merecermos o nosso Sonho, Amém.”
A última oração, o Credo, começa com um grito de entusiasmo:
“...Creio em minha Esperança Fervorosa”
E acaba com esta maravilhosa música:
“...Creio no Vosso Coração, Senhora;
Na santificação dos Vossos Sofrimentos;
Na nossa União dentro da mesma Aurora;
Na extinção dos meus lívidos tormentos
Que há de ser Luz e fel que o meu cálix contém;
Que vive em nós o Amor Eterno. Amém.”
Para dar uma idéia do que é o autor das Rimas, como inspiração, sentimento, surto, não vão precisar mais citações.
Em outro lugar desta folha vai publicado o seu soneto A Cegonha, uma das mais célebres poesias, traduzida hoje em quase todas as línguas.” (Heitor Lima)
Anísio Jobim
Gloriosa figura de poeta e de campeador. Residiu no Amazonas de 1903 a 1912. Quando aqui chegou, já o seu nome recebera a consagração dos mais eminentes críticos da Metrópole. Fora amigo íntimo de Bilac e de Coelho Neto. Em Manaus, num minuto, se tornou ídolo de sua geração. Como homem, no ímpeto das atitudes, na bravura desordenada, nos gestos de nobreza e no destemor das ações, era um Cid corneliano. Como poeta, os seus poemas – fontes luminosas de emoção sensual e artística – refletiam as alegrias superiores da vida.
Rimas, o seu primeiro e único livro de versos, é uma evolução sutil e fugitiva de seu espírito, que mal revela a flama do animador.
Lazinha Luís Carlos (1962)
A lembrança de Annibal Theophilo se mistura às outras de minha infância e sempre que volto ao território fluido da saudade, onde me encontro com as minhas raízes, o poeta nele figura, embora meio impreciso. Impreciso porque, na verdade, nunca o conheci.
Habitávamos São Paulo e eu era pequenina quando o grande vate foi assassinado. Mas Annibal Theophilo é daqueles que não podem morrer, que continuam, deixando um rastro de vivência por onde andaram. Seu nome permaneceu extraordinariamente vivo no círculo onde o fulgor do seu talento penetrou. Esse nome era tão repetidamente pronunciado lá em casa que cheguei a ter a impressão de haver convivido com o poeta.
Quando nos mudamos para o Rio, já ele não pertencia mais a este mundo. Mas, na roda literária formada em torno de Luís Carlos, meu Pai, estava sempre presente, admirado, relembrado. Recitavam-lhe os versos, e meu Pai não se cansava de ratificar sua admiração pelo autor de A Cegonha.
Fui crescendo, se não alcancei vê-lo, em compensação tive a sorte de conhecer a sua viúva e a sua filha – aquela bela e meiga Elisinha, que recordo com particular carinho. Freqüentaram nossa casa. Eram da simpatia de todos. Anos depois, mais recentemente, nas lides literárias tive ocasião de travar conhecimento, também, com Arnaldo Rodrigues, o neto do poeta e filho de Elisinha. Como vêem, quase posso dizer que conheci Annibal Theophilo, pois além do seu estro, foi-me dado aproximar- me do seu desdobramento na vida: a sua família.
Eu, que posso dizer ter aberto os olhos ao mundo num cenário de literatura, tinha pelos “Grandes” das nossas letras uma espécie de comovido respeito, que felizmente conservo. Não sou dos que renegam os antigos valores, para trocá-los pelos de hoje. Aceito alguns novos com o mesmo entusiasmo com que mantenho o meu culto pelos de outrora. Minha admiração literária é como a encenação de Os Persas, tragédia de Ésquilo, ou como os baixos-relevos de Persépolis: aqueles vultos ilustres, firmes na sua estrutura de pedra, imponentes e austeros, lá estão eternos na sua imutabilidade. Entre eles, Annibal Theophilo.
Tal como meu Pai, ele morreu tão moço! Mas, tenho para mim que as criaturas humanas vêm ao mundo com uma missão de bondade e beleza. Enquanto não tiverem completado a soma de boas ou belas ações que lhes cabe realizar, não podem deixar a terra. Algumas há que permanecem aqui longos anos, dando cumprimento, aos poucos, aos atos caritativos e generosos que outros executam mais rapidamente. A estes é dado o prêmio de poder partir mais cedo. O fato de morrer moço ou velho é, pois, uma questão de ritmo, de andamento, na execução das boas obras. Meu Pai, porque realizou em tão pouco tempo, tanta bondade e tanta beleza, foi logo chamado!
“Ele e Annibal Theophilo foram bons mais depressa”... (Lazinha Luís Carlos)
Carlos Maul (1961)
Antes de vê-lo em pessoa já o conhecia e admirava através da poesia. Pertencia a uma geração anterior à minha. Dele andava de boca em boca um soneto famoso: A Cegonha, composição antológica. A juventude o repetia e lhe fixava os versos. E ninguém esquecia aquele final de pensamento profundo:
...a dúvida humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.
Sempre que havia oportunidade, o A Cegonha era citado com entusiasmo ao lado de alguns outros primores como Os Cisnes, de Júlio Salusse; o Olhos Tristes, de Luiz Edmundo, o Mal Secreto, de Raimundo Correia, o Ouvir Estrelas, de Olavo Bilac, A Vingança da Porta, de Alberto de Oliveira, A Carolina, de Machado de Assis. A página de Annibal resistia à comparação com as desses poetas eminentes.
Quando A Cegonha começou a circular nas revistas de todo o Brasil, Annibal Theophilo andava longe daqui, ora no estrangeiro, ora no extremo sul, ora na Amazônia. Os amigos íntimos, como Leal de Souza, entre vários, recordavam-nos nas tertúlias da redação de Careta, e os mais moços se emocionavam com a evocação que ouviam de suas andanças cavalheirescas pelo mundo. O sangue espanhol que lhe fervia nas veias, impelia-o a uma vida movimentada e inquieta, de romantismo palpitante. Assim, todos o conheciam através dos versos e através da crônica verbal dos que com ele privara, até que um dia a sua presença física veio confirmar o que de seu tipo sugestivo trazíamos na imaginação.
A primeira vez que vi Annibal Theophilo foi aí por volta de 1913, na casa de Coelho Neto, na rua do Rozo, no bairro tranqüilo das Laranjeiras. Aos domingos reunia o mestre uma dezena de amigos, gente de todas as idades, numa comovente intimidade que encantava a juventude diante daquela figura angulosa e simpática que nos lembrava o vulto mitológico de Anteu, como que a retemperar-se das forças fatigadas na luta cotidiana nos contatos com os que lhe davam a ilusão da terra moça. Eu percebi que o prodigioso criador do Rei Negro se sentia em atmosfera propícia ao ter, em torno de si, para diálogos magníficos, os que o amavam com ternura e se misturavam com seus filhos. Era um autêntico salão literário onde as idéias mais contraditórias tinham curso, e do qual saíamos sempre com a certeza que aprendêramos algo de novo das falas comunicativas do anfitrião admirável. Foi ali que pude compreender melhor o romancista de minhas primeiras leituras. Diziam-no um devorador de dicionários, um rebuscador de termos difíceis, um arrumador paciente de vocábulos. E Neto era exatamente o contrário dessa lenda. Falava como escrevia, numa espontaneidade impressionante que desmentia o conceito errado em que era tido. Ouvi-lo a narrar um episódio era o mesmo que lê-lo nos seus livros numerosos. O que ele possuía, isso sim, era uma esplêndida cultura humanística, um domínio absoluto da língua, qualidades que lhe permitiam escapar da vulgaridade sem nunca desprezar a simplicidade. E Coelho Neto nesses encontros dominicais inesquecíveis, soube ser um traço de ligação entre os da geração vitoriosa de que ele era ponto culminante, e os da que surgia com ímpetos de continuar-lhe a trajetória luminosa.
Annibal Theophilo viveu ali os encantos de um lar perfeito. Integrou-se no ambiente como se da família que venerava. Devia, então, andar pelos quarenta e poucos anos. Pelo menos aparentava essa idade na sua compleição atlética. Não lhe dei muita atenção a esse aspecto porque o que se não cogitava naquele meio era de certidão de nascimento, pois o mais velho que centralizava as reuniões parecia, no espírito, o mais jovem de todos. Annibal se mostrava aberto de alma, despido de vaidades, feliz entre os felizes, entusiasta, de gestos largos que imediatamente punham à vontade quem com ele se entendesse à primeira vista. Acrescente-se, aliás, que para isso contribuía o ar da casa, ar de afeto que se respirava a longos haustos.
Tenho para mim que foi na casa de Coelho Neto que se tratou, inicialmente, de fundar uma sociedade de literatos que não fosse apenas de grêmio festivo, e sim um núcleo de defesa material dos escritores. De acordo com velhas recordações que me ficaram dessas tardes da rua do Rozo, pensou-se em criar no Brasil uma réplica da “Société de Gens de Lettres” de Paris, a vigilante instituição zeladora dos direitos autorais de seus associados. Coelho Neto e Bilac, com a colaboração de Bastos Tigre, que redigiu os estatutos em normas de sindicato profissional, foram os pioneiros, e a eles se vincularam os demais que vieram a fundar a entidade que teria a sua sede num quinto andar da rua Gonçalves Dias, bem ao lado da Confeitaria Colombo.
A tela que Luiz Edmundo legou à Academia Brasileira de Letras, pintada por Marques Júnior, reproduz de uma fotografia da época uma de nossas reuniões depois de instalada a sociedade. O grupo é de 1915.
Essa sociedade não conseguiu realizar o sonho dos que a idearam, porque mais fortes do que eles eram as dissensões que lavravam no seu seio, onde raros compreendiam a necessidade de não confundir o interesse econômico ligado a trabalho intelectual com as graduações arbitrárias dos méritos ou deméritos de cada um de seus componentes. (Carlos Maul)
Destinos Paralelos: Theophilo De Albuquerque
Eu fui dos que tiveram a ventura de conhecer Annibal Theophilo de perto, por isso mesmo que, também, daqueles que mais choraram ao sabe-lo morto. Encontramo-nos, um dia, no Amazonas, no grande deserto das águas, em meio ao cenário imenso, que por sua grandeza, sua majestade, sua sensação de infinito, tem a virtude divina de aproximar os homens. Encontramo-nos, e o nosso encontro foi de dois velhos amigos. A miragem do deserto nos havia atraído, de pontos diferentes, em idades diferentes; a solidão do deserto aproximou-nos, como a dois extraviados nos próprios destinos.
Estávamos no exílio, conforme a sua própria expressão, quando, mais tarde, ao enviar-me o seu livro, falou-me “nas horas agrestes e escuras do nosso exílio no Amazonas”; estávamos no exílio e essa circunstância fez com que, em pouco tempo, nos conhecêssemos completamente um ao outro. Dissemos um ao outro as nossas queixas da vida e a felicidade que ainda esperávamos dela. Ele ficou sabendo de toda a minha história, mais curta do que a sua doze anos, mas já entremeada de páginas fortes e tristes; eu fiquei no conhecimento de toda a sua vida, que já era, àquele tempo, uma viva expressão de heroísmo forte, de drama intenso e de beleza clara.
Deixei o exílio para não morrer. Separamo-nos. Dois anos depois o destino o trazia novamente ao Rio, onde eu já me encontrava. Aqui, durante quatro anos, continuou, com a mesma amplitude, o sincero entendimento amigo das nossas almas.
Tive conhecimento de toda a extensão das suas qualidades, de todo o apuro do seu caráter, de toda a superioridade do seu coração, de toda a sua nobreza, de linhas suaves e severas.
De Annibal Theophilo ficou-me, por conseguinte, como expressão moral, a noção mais perfeita e mais vasta! (Theophilo De Albuquerque)
Margarida Lopes De Almeida (1962)
Apaixonada pela Poesia desde criança, meus pais orientavam a escolha de minhas leituras e a formação do meu repertório incipiente, apontando-me a beleza oculta ou transparente dos versos que me davam.
Foi assim que um dia me puseram nas mãos o mais célebre soneto de Annibal Theophilo – A Cegonha.
Na tarde fatídica de sua morte estive no salão do Jornal do Comércio em companhia de minha tia Adelina Lopes Vieira, poetisa, ao lado de quem apareço em um instantâneo publicado no Fon-Fon, na semana seguinte à do drama. Tendo sido das primeiras pessoas a chegar, pudemos ficar na primeira fila das cadeiras e ver e ouvir de perto o Poeta na sua última hora de vida. Recitou uma só poesia – não me lembro se o soneto – A Ausente.
Terminada a “Hora Literária”, voltei diretamente para casa, em Santa Teresa. O escritor português Alberto d’Oliveira, cônsul de Portugal no Rio, grande amigo nosso, deveria jantar conosco. Além dele, a esposa e o casal João Luso. Haviam chegado todos, menos Alberto d’Oliveira. Minha mãe inquietara-se com o seu desusado atraso. Chegou pálido, nervoso, ainda sob o abalo provocado pela tragédia a que assistira. Lembro-me muito bem da comoção estupefata com que todos o ouvimos e da mágoa que pairou no decorrer do jantar que deveria ser festivo.
Morrera um Poeta! (Margarida Lopes De Almeida)
Antenor Nascentes (1962)
Tenho em meu caderno de sonetos escolhidos, a obra de Annibal Theophilo, A Cegonha, um dos mais perfeitos e belos sonetos da literatura brasileira.
Renato Alvim (Novembro de 1961)
Um homem forte na verdadeira acepção da palavra, moral e fisicamente forte. Conheci-o no antigo “Café Papagaio”, numa roda onde estavam Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho, Sarandy Raposo, José Saturnino de Brito, José do Patrocínio Filho. Annibal Theophilo entrara no Café e ao vê-los, aproximou-se da mesa. Foi, então, que me apresentaram a ele. Nossas relações não foram íntimas, mas amistosas. Sua prosa era encantadora.
Rodrigo Otávio Filho (1962)
Lembro-me de sua bela figura e de sua forte personalidade. Conheço e admiro sua obra poética de alto teor. Sua poesia tem beleza e profundidade. Foi muito louvado pelos seus contemporâneos.
Mansueto Bernardi (3/1/1962)
O poeta Annibal Theophilo não foi esquecido por mim nem por Eduardo Guimarães. Adiantando-lhe, todavia, que entre os anos de 1915 e 1920, Eduardo Guimarães e eu andávamos trabalhando na elaboração de uma antologia poética do Rio Grande do Sul e que nesse trabalho, nunca concluído e até agora inédito, A.T. comparece com 7 composições: Mater, Palavras de um Forte, A um Adolescente Nadador, A Cegonha, À Beira do Abismo, Meã Máxima Culpa e Vilancete. Relendo agora os originais desse florilégio, verifico existirem, de fato, nele, algumas obras-primas.
Álvaro Moreyra (18 de julho de 1962)
Sei que Annibal nasceu, ao fim da Guerra do Paraguai, no Forte de Humaitá. Criou-se em Porto Alegre. Por todos os gaúchos sempre foi tido por gaúcho. Com muita honra para o Rio Grande do Sul...
Jorge Jobim
Annibal Theophilo herdara o cavalheirismo heróico, o culto pelas atitudes dignas, o espírito de combatividade, o desprezo superior pelos pusilânimes. Foi, talvez, por possuir esse conjunto admirável de qualidades, que o Rio Grande foi sempre a pátria de eleição: não disfarçava nunca o prazer que sentia em se dizer rio-grandense.
O “Príncipe dos Poetas” – Olegário Mariano concedeu entrevista aos diretores da Revista Origem, jornalistas Francisco Oliveira (à esq.) e o autor deste trabalho, Arnaldo Rodrigues.
O poeta das Cigarras, amigo do poeta da Cegonha, lembrou-nos ter pertencido àquele grupo de jovens que cercavam Annibal Theophilo para ouvir dele os seus poemas e as narrativas de suas aventuras na floresta amazônica. |
CORRESPONDÊNCIA
Autêntico E Entusiástico Auditório - Paulo Coelho Neto Rio, 11/12/1961 Meu caro Arnaldo Rodrigues. (Neto de Annibal Theophilo) A missão em que você está empenhado, objetivando preencher uma lacuna na história da literatura brasileira, com um livro sobre a vida e a obra de Annibal Theophilo, é digna de estímulo e de irrestrito louvor. Na reconstituição da figura mental e humana do admirável poeta de A Cegonha, pesquisando, coligindo e confrontando documentos, opiniões e juízos críticos, recorrendo aos depoimentos de contemporâneos de seu ilustre avô, sem dúvida você experimentará grandes emoções à medida que a personalidade do biografado começar a crescer no seu espírito – até se completar no retrato físico, moral e intelectual de quem foi um dos cultos de minha infância e a quem, em todas as outras fases da existência, sempre consagrei inalterável e profunda admiração. Como Olavo Bilac, Alcides Maya, Gustavo Barroso, Martins Fontes, Olegário Mariano, Gregório Fonseca, Heitor Lima, Bastos Tigre, Luiz Murat, Leal de Souza, Carlos Maul e tantos outros cintilantes poetas e prosadores, Annibal Theophilo era grande amigo de Coelho Neto e assíduo freqüentador de seu famoso gabinete de trabalho. Para mim e meus irmãos, poucas figuras literárias irradiavam tanta simpatia pessoal quanto a de Annibal Theophilo. Como as histórias de Scheherazade, que nunca terminavam, ele tinha sempre, para a nossa permanente curiosidade, uma aventura de herói infantil da época, o famigerado Chico Lambeta. “É o meu mais atento e entusiástico auditório”, confidenciou certa vez a Martins Fontes, depois de um dos seus inúmeros êxitos junto à criançada. |
A Annibal Theophilo também se poderia aplicar, com toda a justiça, a mesma legenda que definia Bayard, como homem: “Sans peur et sans reproche”. Receba, meu caro Arnaldo Rodrigues, um abraço muito afetuoso do amigo e confrade, ( Paulo Coelho Neto)
Meu Queridíssimo Annibal
Manaus, 6 de janeiro de 1938
À dona Elisa Theophilo Rodrigues (filha de Annibal Theophilo, na foto ao lado com dois de seus seis filhos homens)
Tenho a honra de enviar-lhe, por este mesmo correio, registrado, o recorte de O Jornal, de Manaus, com o trecho do discurso pronunciado na Academia Amazonense de Letras, em saudação à escritora Violeta Branca de Vasconcelos, a primeira mulher eleita para o nosso sodalício, e cuja cadeira tem por patrono o meu inesquecível Annibal Theophilo. Por uma singular coincidência, fui eu o escolhido para saudá-la. Lembrei-me de sua filha gentilíssima, que considero justamente uma radiosa e vibrátil inteligência, com a intenção de transmitir-lhe a notícia da consagração feita ao insigne poeta brasileiro pelos intelectuais do extremo norte. Como lhe afirmei, em março do ano passado, por ocasião da minha viagem ao Rio, eu fui, talvez, o mais íntimo dos seus amigos no Amazonas. Conheci-lhe, de perto, o espírito, o coração e a sensibilidade. Assim, não me foi difícil dizer duas palavras, evocando a vida e a obra do meu desditoso companheiro de mocidade. Revivo, aí, alguns episódios dessa existência que se terminou na angústia do mais implacável e desapiedado dos destinos. Não sei se já os conhecia. Seja como for, relendo-os, sentirá como foi grande a minha emoção rememorando uma das páginas intensas dessa vida brilhante e malograda.
Antes, porém, de terminar esta carta, desejo informar-lhe, outrossim, que enobrecem o meu gabinete de estudos, aqui em Manaus, os retratos emoldurados da família de Annibal Theophilo, circundado a fotografia do meu inolvidável Amigo. A mãe, a viúva, a filha, os netos de Annibal Theophilo, e também o seu genro, numa impressiva galeria, transformada em santuário, que hoje me pertence, graças à bondade, ao enlevo, à formosura espiritual de dona Elisa, a filha extremosa e estremecida, que o poeta jamais esqueceu, mesmo nas horas mais sombrias e amargas da adversidade.
Rogo-lhe a gentileza de apresentar as minhas respeitosas homenagens ao seu digno esposo, sr. A. Howat Rodrigues, a quem devo cativantes testemunhos de simpatia.
E à nobre dona Elisa, a mais amada de todas as filhas, dileta do meu queridíssimo Annibal a expressão do mais alto reconhecimento do velho admirador e servo devotado (Péricles Moraes)
Meu Queridíssimo Annibal
Manaus, 6 de janeiro de 1938
À dona Elisa Theophilo Rodrigues (filha de Annibal Theophilo, na foto ao lado com dois de seus seis filhos homens)
Tenho a honra de enviar-lhe, por este mesmo correio, registrado, o recorte de O Jornal, de Manaus, com o trecho do discurso pronunciado na Academia Amazonense de Letras, em saudação à escritora Violeta Branca de Vasconcelos, a primeira mulher eleita para o nosso sodalício, e cuja cadeira tem por patrono o meu inesquecível Annibal Theophilo. Por uma singular coincidência, fui eu o escolhido para saudá-la. Lembrei-me de sua filha gentilíssima, que considero justamente uma radiosa e vibrátil inteligência, com a intenção de transmitir-lhe a notícia da consagração feita ao insigne poeta brasileiro pelos intelectuais do extremo norte. Como lhe afirmei, em março do ano passado, por ocasião da minha viagem ao Rio, eu fui, talvez, o mais íntimo dos seus amigos no Amazonas. Conheci-lhe, de perto, o espírito, o coração e a sensibilidade. Assim, não me foi difícil dizer duas palavras, evocando a vida e a obra do meu desditoso companheiro de mocidade. Revivo, aí, alguns episódios dessa existência que se terminou na angústia do mais implacável e desapiedado dos destinos. Não sei se já os conhecia. Seja como for, relendo-os, sentirá como foi grande a minha emoção rememorando uma das páginas intensas dessa vida brilhante e malograda.
Antes, porém, de terminar esta carta, desejo informar-lhe, outrossim, que enobrecem o meu gabinete de estudos, aqui em Manaus, os retratos emoldurados da família de Annibal Theophilo, circundado a fotografia do meu inolvidável Amigo. A mãe, a viúva, a filha, os netos de Annibal Theophilo, e também o seu genro, numa impressiva galeria, transformada em santuário, que hoje me pertence, graças à bondade, ao enlevo, à formosura espiritual de dona Elisa, a filha extremosa e estremecida, que o poeta jamais esqueceu, mesmo nas horas mais sombrias e amargas da adversidade.
Rogo-lhe a gentileza de apresentar as minhas respeitosas homenagens ao seu digno esposo, sr. A. Howat Rodrigues, a quem devo cativantes testemunhos de simpatia.
E à nobre dona Elisa, a mais amada de todas as filhas, dileta do meu queridíssimo Annibal a expressão do mais alto reconhecimento do velho admirador e servo devotado (Péricles Moraes)
Convite Para Um Novo Jornal
Rio, maio, 1906
Meu caro Annibal
Já são decorridos três anos que deixaste o Rio, e depois de tua partida ainda não tive sequer uma notícia exata da estância amiga para onde o destino te asilou.
Verdade é que me prevenias com antecedência desse teu propósito de isolar-te para bem longe do rumor das cidades, dos centros de movimento, durante uma regular temporada, a fim de retemperares ainda mais o teu espírito; mas sempre pensei que desse ermo longínquo em que vais peregrinando, como um nômade sequioso de imprevistos, uma vez por outra, me desses notícias de tua vida, da tua saúde, das tuas atuais preocupações.
Embrenhado nesses selvas, aí também se acha o nosso Virgílio, por intermédio de quem dirijo-te a presente, pois ele é que vagamente me tem referido a rota dos teus passos por essas paragens.
Deves lembrar-te do ajuste que aqui celebramos em começo de maio de 1903, para a fundação de um vespertino e dos passos que dei para a realização desse velho ideal jornalístico.
Pois bem. O meu espírito não permitiu que a idéia adormecesse, e apesar dos múltiplos afazeres da minha ingrata profissão, tenho o prazer de anunciar-te que me acho à frente, de novo, de uma excelente campanha no intuito de levarmos avante a montagem de um órgão diário, de grande formato e dedicado especialmente aos interesses das classes conservadoras...
Pretendemos ao novo jornal dar o título sugestivo de “Diário do Comércio”, cuja direção deverá ficar a cargo do Dr. Solidônio Leite e secretário Joaquim Viana...
É natural, pois, que fazendo eu parte integrante dessa organização, me lembre de associar os meus esforços à valiosa operosidade do teu dedicado concurso, e assim, desejaria saber com a maior brevidade possível se me autorizarias a pleitear com os meus amigos um lugar de destaque na redação do nosso “Diário”, para a tua definitiva instalação aqui, ao nosso lado.
Sê breve na resposta e na tua decisão, pois deves compreender a ansiedade em que me acho de rever o bom amigo e de extrair do teu formoso espírito grande parte do material de que necessitamos para bem consolidar a nossa obra... (Antero de Almeida)
Rio, maio, 1906
Meu caro Annibal
Já são decorridos três anos que deixaste o Rio, e depois de tua partida ainda não tive sequer uma notícia exata da estância amiga para onde o destino te asilou.
Verdade é que me prevenias com antecedência desse teu propósito de isolar-te para bem longe do rumor das cidades, dos centros de movimento, durante uma regular temporada, a fim de retemperares ainda mais o teu espírito; mas sempre pensei que desse ermo longínquo em que vais peregrinando, como um nômade sequioso de imprevistos, uma vez por outra, me desses notícias de tua vida, da tua saúde, das tuas atuais preocupações.
Embrenhado nesses selvas, aí também se acha o nosso Virgílio, por intermédio de quem dirijo-te a presente, pois ele é que vagamente me tem referido a rota dos teus passos por essas paragens.
Deves lembrar-te do ajuste que aqui celebramos em começo de maio de 1903, para a fundação de um vespertino e dos passos que dei para a realização desse velho ideal jornalístico.
Pois bem. O meu espírito não permitiu que a idéia adormecesse, e apesar dos múltiplos afazeres da minha ingrata profissão, tenho o prazer de anunciar-te que me acho à frente, de novo, de uma excelente campanha no intuito de levarmos avante a montagem de um órgão diário, de grande formato e dedicado especialmente aos interesses das classes conservadoras...
Pretendemos ao novo jornal dar o título sugestivo de “Diário do Comércio”, cuja direção deverá ficar a cargo do Dr. Solidônio Leite e secretário Joaquim Viana...
É natural, pois, que fazendo eu parte integrante dessa organização, me lembre de associar os meus esforços à valiosa operosidade do teu dedicado concurso, e assim, desejaria saber com a maior brevidade possível se me autorizarias a pleitear com os meus amigos um lugar de destaque na redação do nosso “Diário”, para a tua definitiva instalação aqui, ao nosso lado.
Sê breve na resposta e na tua decisão, pois deves compreender a ansiedade em que me acho de rever o bom amigo e de extrair do teu formoso espírito grande parte do material de que necessitamos para bem consolidar a nossa obra... (Antero de Almeida)
Carta Sobre Rimas
Meu caro Annibal Theophilo
Recebi o teu precioso livro de versos: Rimas. Penhorado pela valiosa oferta agradeço-te a prova de lembrança e consideração, que tiveste para comigo, o mais obscuro dos teus amigos.
Li-o cuidadosamente, ponde ? a de parte a amizade sincera que tenho, para poder avaliar-te como artista; assim, pois, procurei detidamente na tua coleção, de excelentes versos, algum senão para poder dizer o que de teu livro não gostei, porém, nada encontrei, que me não me agradasse, antes pelo contrário, em cada página, em cada estrofe, em cada verso que lia, sentia a vibração poderosa e espontânea do sentimento puro de artista verdadeiro que és.
Meu caro, sei que és inimigo das manifestações, mas o que queres, meu amigo? Não sei sentir nada sem manifestar-me com a franqueza que me caracteriza; portanto, permita que confesse: que se voltava ao meu particular amigo, Annibal Theophilo, antes de ler o seu livro, a mais verdadeira dedicação, hoje tenho ao artista amigo a mais merecida adoração que se pode ter a um homem cujo esforço representa o engrandecimento, incontestável, das letras de sua pátria.
Tudo no teu livro é magnífico, mas há nele um soneto que me fala intimamente: é o Mater, que me traz recordações felizes desse ente querido a quem sempre devemos render as mais sinceras homenagens, e que a parca ímpia me arrebatou bem cedo, deixando-me órfão desse carinho único e incomparável.
O teu soneto, Mater, tem qualidades tão distintas que me não posso furtar ao prazer de transcreve-lo aqui:
MATER
Mãe! Doce afeto a cuja sombra venho
Buscar a luz do bem de que me inundo;
Pobre mártir, exemplo alto e profundo
Que em vão quer definir meu fraco engenho;
De outra não sei que traga neste mundo,
Pelos calvários que subido tenho,
Nos frágeis ombros um tão rude lenho
Dentro de noite de negror tão fundo.
De que esperavas pelo nascimento,
Do Lar sonhado – todo calma e brilho –
Que vazio e tristonho isolamento!
Mãe resignada a quem me curvo e humilho
Como orgulhoso pago em sofrimento,
A pura glória de nascer teu filho!
E satisfeito, por ter ocasião de provar-te, com esta, que as pequenas amizades, embora de guarda-chuva aberto, como dizes na tua jocosa dedicatória, se transformam em grandes e duradouras, subscrevo-me reiterando-te os meus protestos de amizade e agradecimento. (Luiz Leal)
Meu caro Annibal Theophilo
Recebi o teu precioso livro de versos: Rimas. Penhorado pela valiosa oferta agradeço-te a prova de lembrança e consideração, que tiveste para comigo, o mais obscuro dos teus amigos.
Li-o cuidadosamente, ponde ? a de parte a amizade sincera que tenho, para poder avaliar-te como artista; assim, pois, procurei detidamente na tua coleção, de excelentes versos, algum senão para poder dizer o que de teu livro não gostei, porém, nada encontrei, que me não me agradasse, antes pelo contrário, em cada página, em cada estrofe, em cada verso que lia, sentia a vibração poderosa e espontânea do sentimento puro de artista verdadeiro que és.
Meu caro, sei que és inimigo das manifestações, mas o que queres, meu amigo? Não sei sentir nada sem manifestar-me com a franqueza que me caracteriza; portanto, permita que confesse: que se voltava ao meu particular amigo, Annibal Theophilo, antes de ler o seu livro, a mais verdadeira dedicação, hoje tenho ao artista amigo a mais merecida adoração que se pode ter a um homem cujo esforço representa o engrandecimento, incontestável, das letras de sua pátria.
Tudo no teu livro é magnífico, mas há nele um soneto que me fala intimamente: é o Mater, que me traz recordações felizes desse ente querido a quem sempre devemos render as mais sinceras homenagens, e que a parca ímpia me arrebatou bem cedo, deixando-me órfão desse carinho único e incomparável.
O teu soneto, Mater, tem qualidades tão distintas que me não posso furtar ao prazer de transcreve-lo aqui:
MATER
Mãe! Doce afeto a cuja sombra venho
Buscar a luz do bem de que me inundo;
Pobre mártir, exemplo alto e profundo
Que em vão quer definir meu fraco engenho;
De outra não sei que traga neste mundo,
Pelos calvários que subido tenho,
Nos frágeis ombros um tão rude lenho
Dentro de noite de negror tão fundo.
De que esperavas pelo nascimento,
Do Lar sonhado – todo calma e brilho –
Que vazio e tristonho isolamento!
Mãe resignada a quem me curvo e humilho
Como orgulhoso pago em sofrimento,
A pura glória de nascer teu filho!
E satisfeito, por ter ocasião de provar-te, com esta, que as pequenas amizades, embora de guarda-chuva aberto, como dizes na tua jocosa dedicatória, se transformam em grandes e duradouras, subscrevo-me reiterando-te os meus protestos de amizade e agradecimento. (Luiz Leal)
ANNIBAL THEOPHILO NAS ANTOLOGIAS E ACADEMIAS
Panorama Da Poesia Brasileira
“O Pré-Modernismo”, de Fernando Góes
Annibal Theophilo da Silva, autor de um dos sonetos mais famosos do seu tempo – A Cegonha - ... o seu único livro de versos, que mostra o espírito e o estilo arcaizante de quem nutria grande amor pelas formas antigas: vilancetes, baladas, rondós, sonetos à Camões, à Bocage. Escreveu também esse companheiro de Coelho Neto e de Bilac, de Goulart de Andrade e Martins Fontes – que o chamava “filho subjetivo de Camões” – versos satíricos e humorísticos que alcançaram grande sucesso.
Dicionário Universal De Literatura
Refere-se Henrique Perdigão aos poemas de Annibal Theophilo em seu dicionário, nos seguintes termos:
“...pelos quais passou a incomparável ritmia dos
João de Deus, de um suave lirismo, próprio do grande
poeta e que ele não enjeitaria.”
Almanaque Brasileiro Garnier Para O Ano De 1908
Publicação sob a direção de João Ribeiro:
É um parnasiano e um romântico, ao mesmo tempo. Seus versos deixam ver muita preocupação de forma. Há, porém, idéias, sentimento, e, às vezes, uma certa dose de filosofia.
Entusiasta da obra do grande épico português, não se pode furtar ao desejo de imita-lo e o fez com felicidade.
A coleção de seus sonetos camonianos é já volumosa. Ouso mesmo adiantar que, entre nós, ninguém os faz com mais perícia.
Soube aproveitar a erudição clássica, dentro dos moldes parnasianos.
Aparecem no Almanaque cinco poemas de Annibal Theophilo: Súplica, Falando ao Coração, Balada, Ofertório e A Cegonha.
Rosal De Ritmos
Escorço histórico da evolução da poesia brasileira. (Notícia comemorativa do centenário da Independência do Brasil, publicada, em resumo, na revista “A Exposição de 1922”). Luís Carlos – 1924 na parte “Advento do século XX”:
Annibal Theophilo abre o seu memorial de ritmos fidalgos, dentre os quais é justo salientar o soneto A Cegonha, de belíssima concepção, que termina por este magistral terceto:
“Ao vê-la assim mirar-se n’água, penso,
Ver a dúvida humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.”
Revista Americana
Na Revista Americana, na sua página 54, nº III, foi publicado em 15 de julho de 1915, na Seção Omnia, o poema A uns olhos de mármore, antecedido pelas seguintes palavras:
São de Annibal Theophilo, o cavalheiresco artista de A Cegonha, estes mimosos, delicados versos que aqui transcrevemos, em homenagem à sua memória:
A UNS OLHOS DE MÁRMORE
Diante do busto “Invocation” de Vikstrom
Olhos cheios de unção postos na altura,
- Dois céus na terra para o céu erguido,
Como implorando pelos desvalidos
Que andam famintos pela desventura;
Olhos feitos de mágoa e de doçura,
Tristes como dois anjos decaídos,
Desaureolados, mudos, esquecidos
Injustamente nesta vida escura...
Olhos, que contemplais com o olhar absorto?
Que sagrada visão olhais tão ternos?
Em que áurea estrela desejais conforto?
Olhos cheios da bênção de entes caros,
Bendita a mãe que vos tornou eternos
Nesse bloco de mármore de Paros!
Temas Poéticos
No livro O Conceito e a Imagem na Poesia Brasileira, Humberto de Campos seleciona temas que foram tratados por muitos dos nossos poetas. Está presente também a poesia de Annibal Theophilo (a dúvida, as embarcações, a esperança, os olhos, o segredo, o sonho, a vingança, etc...)
Vejam-se os trechos escolhidos por Humberto de Campos:
BORBOLETAS (Almas Sedentas)
Rodam, revoam, sobem, descem
Trêmulas, doidas... mais parecem,
Girando no ar, flores aladas
Assustadas!
DÚVIDA (Diante de um Enigma)
De tudo que a natureza
Muda e eterna, ostentando à Luz,
De quanto a ciência deduz
Só tendo certa a incerteza
Do que era seu. Que surpresa
Pois, é o que me espera a mim?
Para onde vou? A que vim?
EMBARCAÇÕES (Noturno)
Quais borboletas repousando,
Movendo as asas devagar,
Batéis cruzavam oscilando,
Sonolentamente ao luar.
ESPERANÇA
Esperança, ventura da desgraça,
Trecho puro do céu sorrindo às almas
Na floresta de angústia da incerteza!
OLHOS (A uns olhos de mármore)
Olhos feitos de magia e doçura
Tristes como dois anjos decaídos
Desaureolados, mudos, esquecidos
Injustamente, nesta vida escura...
SEGREDO (Esforço Inútil)
Segredo de Amor, Senhora,
Pode a boca não dizer,
O olhar não sabe esconder.
SONHO
Sonho! Mentira colorida
Estrela guia de quem lida
Pelos caminhos da ilusão;
Serena força, és a razão
De ser de toda minha vida!
VINGANÇA (Livre)
Vamos! Vingança é uma ambrosia:
Quem a bebeu, deseja mais!
Almanaque “Careta”, Maio de 1912
As Rimas de Annibal Theophilo já foram consagradas na grande imprensa pelos arautos de todos os partidos literários...
A Cegonha, de Annibal Theophilo, que tão justo renome ganhou, desde a sua publicação, não só pela força perfeita, magnífica e sóbria em que foi vazado, como pelo assunto seleto e brilhante e pela maravilhosa sugestão da paisagem que evoca, nos três versos do primeiro quarteto. No gênero no Brasil é uma verdadeira miniatura de obra-prima.
Daí talvez provenha, com justiça, o seu prestígio em todas as rodas literárias. Com o soneto As Pombas, de Raymundo Correia, e com aquele outro em que o maravilhoso Bilac, na Via Láctea, nos ensina a ouvir estrelas, A Cegonha, de Annibal Theophilo, são os versos mais populares do Brasil moderno.
A Maçã (1923)
Martins Fontes, o poeta maravilhoso e ardente de Verão acaba de reunir em volumes alguns versos esquecidos, ou inéditos, de vários dos seus amigos mais íntimos. Entre essas rimas tornadas hoje preciosas estão as “ônzimas” de Annibal Theophilo, o saudoso e brilhante espírito apagado por uma bala, há oito anos. Versos de alegria, mostram o que havia de jovialidade e de graça na intimidade daquela figura aparentemente tão triste e severa.
Academias
Três academias prestigiaram o nome de Annibal Theophilo. No livro de Liberato Bittencourt, Nova História da Literatura Brasileira, o nome do poeta aparece como patrono na Academia Riograndense de Letras, na Academia Amazonense de Letras e na Academia Acreana de Letras.
Rimas, Um Livro Para Muitos Amigos
O único livro publicado por Annibal Theophilo, em 1911, Rimas (editado pela Livraria Portuense, Lopes & Cia., Porto, Portugal), foi dividido em duas partes: Musa Erradia, com 21 poemas, e Folhas de um Poema, com 58. Tinha 188 páginas e da edição foram tirados 1.000 exemplares.
Muitos dos poemas são dedicados a amigos seus: Manoel de Souza Lobo, Hércules Weaver, José de Azevedo Dória, Adriano Jorge, Gregório Fonseca, Aquiles Menezes, Marcolino Fagundes, Calixto Cordeiro, Péricles Moraes, Martins Fontes, Argemiro Jorge, Leal de Souza, Heliodoro Balbi, Raul Pederneiras, Aarão Dória, Jorge Pinheiro, Anibal Amorim, Alcides Maya, Raimundo Monteiro.
Panorama Da Poesia Brasileira
“O Pré-Modernismo”, de Fernando Góes
Annibal Theophilo da Silva, autor de um dos sonetos mais famosos do seu tempo – A Cegonha - ... o seu único livro de versos, que mostra o espírito e o estilo arcaizante de quem nutria grande amor pelas formas antigas: vilancetes, baladas, rondós, sonetos à Camões, à Bocage. Escreveu também esse companheiro de Coelho Neto e de Bilac, de Goulart de Andrade e Martins Fontes – que o chamava “filho subjetivo de Camões” – versos satíricos e humorísticos que alcançaram grande sucesso.
Dicionário Universal De Literatura
Refere-se Henrique Perdigão aos poemas de Annibal Theophilo em seu dicionário, nos seguintes termos:
“...pelos quais passou a incomparável ritmia dos
João de Deus, de um suave lirismo, próprio do grande
poeta e que ele não enjeitaria.”
Almanaque Brasileiro Garnier Para O Ano De 1908
Publicação sob a direção de João Ribeiro:
É um parnasiano e um romântico, ao mesmo tempo. Seus versos deixam ver muita preocupação de forma. Há, porém, idéias, sentimento, e, às vezes, uma certa dose de filosofia.
Entusiasta da obra do grande épico português, não se pode furtar ao desejo de imita-lo e o fez com felicidade.
A coleção de seus sonetos camonianos é já volumosa. Ouso mesmo adiantar que, entre nós, ninguém os faz com mais perícia.
Soube aproveitar a erudição clássica, dentro dos moldes parnasianos.
Aparecem no Almanaque cinco poemas de Annibal Theophilo: Súplica, Falando ao Coração, Balada, Ofertório e A Cegonha.
Rosal De Ritmos
Escorço histórico da evolução da poesia brasileira. (Notícia comemorativa do centenário da Independência do Brasil, publicada, em resumo, na revista “A Exposição de 1922”). Luís Carlos – 1924 na parte “Advento do século XX”:
Annibal Theophilo abre o seu memorial de ritmos fidalgos, dentre os quais é justo salientar o soneto A Cegonha, de belíssima concepção, que termina por este magistral terceto:
“Ao vê-la assim mirar-se n’água, penso,
Ver a dúvida humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.”
Revista Americana
Na Revista Americana, na sua página 54, nº III, foi publicado em 15 de julho de 1915, na Seção Omnia, o poema A uns olhos de mármore, antecedido pelas seguintes palavras:
São de Annibal Theophilo, o cavalheiresco artista de A Cegonha, estes mimosos, delicados versos que aqui transcrevemos, em homenagem à sua memória:
A UNS OLHOS DE MÁRMORE
Diante do busto “Invocation” de Vikstrom
Olhos cheios de unção postos na altura,
- Dois céus na terra para o céu erguido,
Como implorando pelos desvalidos
Que andam famintos pela desventura;
Olhos feitos de mágoa e de doçura,
Tristes como dois anjos decaídos,
Desaureolados, mudos, esquecidos
Injustamente nesta vida escura...
Olhos, que contemplais com o olhar absorto?
Que sagrada visão olhais tão ternos?
Em que áurea estrela desejais conforto?
Olhos cheios da bênção de entes caros,
Bendita a mãe que vos tornou eternos
Nesse bloco de mármore de Paros!
Temas Poéticos
No livro O Conceito e a Imagem na Poesia Brasileira, Humberto de Campos seleciona temas que foram tratados por muitos dos nossos poetas. Está presente também a poesia de Annibal Theophilo (a dúvida, as embarcações, a esperança, os olhos, o segredo, o sonho, a vingança, etc...)
Vejam-se os trechos escolhidos por Humberto de Campos:
BORBOLETAS (Almas Sedentas)
Rodam, revoam, sobem, descem
Trêmulas, doidas... mais parecem,
Girando no ar, flores aladas
Assustadas!
DÚVIDA (Diante de um Enigma)
De tudo que a natureza
Muda e eterna, ostentando à Luz,
De quanto a ciência deduz
Só tendo certa a incerteza
Do que era seu. Que surpresa
Pois, é o que me espera a mim?
Para onde vou? A que vim?
EMBARCAÇÕES (Noturno)
Quais borboletas repousando,
Movendo as asas devagar,
Batéis cruzavam oscilando,
Sonolentamente ao luar.
ESPERANÇA
Esperança, ventura da desgraça,
Trecho puro do céu sorrindo às almas
Na floresta de angústia da incerteza!
OLHOS (A uns olhos de mármore)
Olhos feitos de magia e doçura
Tristes como dois anjos decaídos
Desaureolados, mudos, esquecidos
Injustamente, nesta vida escura...
SEGREDO (Esforço Inútil)
Segredo de Amor, Senhora,
Pode a boca não dizer,
O olhar não sabe esconder.
SONHO
Sonho! Mentira colorida
Estrela guia de quem lida
Pelos caminhos da ilusão;
Serena força, és a razão
De ser de toda minha vida!
VINGANÇA (Livre)
Vamos! Vingança é uma ambrosia:
Quem a bebeu, deseja mais!
Almanaque “Careta”, Maio de 1912
As Rimas de Annibal Theophilo já foram consagradas na grande imprensa pelos arautos de todos os partidos literários...
A Cegonha, de Annibal Theophilo, que tão justo renome ganhou, desde a sua publicação, não só pela força perfeita, magnífica e sóbria em que foi vazado, como pelo assunto seleto e brilhante e pela maravilhosa sugestão da paisagem que evoca, nos três versos do primeiro quarteto. No gênero no Brasil é uma verdadeira miniatura de obra-prima.
Daí talvez provenha, com justiça, o seu prestígio em todas as rodas literárias. Com o soneto As Pombas, de Raymundo Correia, e com aquele outro em que o maravilhoso Bilac, na Via Láctea, nos ensina a ouvir estrelas, A Cegonha, de Annibal Theophilo, são os versos mais populares do Brasil moderno.
A Maçã (1923)
Martins Fontes, o poeta maravilhoso e ardente de Verão acaba de reunir em volumes alguns versos esquecidos, ou inéditos, de vários dos seus amigos mais íntimos. Entre essas rimas tornadas hoje preciosas estão as “ônzimas” de Annibal Theophilo, o saudoso e brilhante espírito apagado por uma bala, há oito anos. Versos de alegria, mostram o que havia de jovialidade e de graça na intimidade daquela figura aparentemente tão triste e severa.
Academias
Três academias prestigiaram o nome de Annibal Theophilo. No livro de Liberato Bittencourt, Nova História da Literatura Brasileira, o nome do poeta aparece como patrono na Academia Riograndense de Letras, na Academia Amazonense de Letras e na Academia Acreana de Letras.
Rimas, Um Livro Para Muitos Amigos
O único livro publicado por Annibal Theophilo, em 1911, Rimas (editado pela Livraria Portuense, Lopes & Cia., Porto, Portugal), foi dividido em duas partes: Musa Erradia, com 21 poemas, e Folhas de um Poema, com 58. Tinha 188 páginas e da edição foram tirados 1.000 exemplares.
Muitos dos poemas são dedicados a amigos seus: Manoel de Souza Lobo, Hércules Weaver, José de Azevedo Dória, Adriano Jorge, Gregório Fonseca, Aquiles Menezes, Marcolino Fagundes, Calixto Cordeiro, Péricles Moraes, Martins Fontes, Argemiro Jorge, Leal de Souza, Heliodoro Balbi, Raul Pederneiras, Aarão Dória, Jorge Pinheiro, Anibal Amorim, Alcides Maya, Raimundo Monteiro.
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