Bilac Previu A Morte De Annibal Theophilo
Leal de Souza relata num dos seus artigos um acontecimento que preocupou a muitos dos amigos de Annibal Theophilo. Foi uma visão que teve Olavo Bilac, dias antes da morte do poeta gaúcho: Jantávamos na casa de Alexandre Lambert Guimarães e, de pronto, cruzando o talher, a face ensombrada, Olavo Bilac declarou-se indisposto, pediu que não nos inquietássemos com a sua indisposição e recomendou que não lhe fizéssemos perguntas. Ao fim do jantar, chamando Alexandre e outros amigos, disse-lhes: Eu vi, repentinamente, naquele canto, o Annibal cair ensangüentado! E aflito, enquanto Annibal, na sala próxima, conversava com uma senhora, Bilac afirmava: Vejo-o de novo, naquele canto, caído e ensangüentado!... Dias mais tarde, Leal de Souza, que assinava na “Careta” o “Bric-à-Brac”, escrevia a seguinte crônica: O Fim De Uma Festa Na tarde de 19 de junho, ao sair do grande salão do Jornal do Comércio, os escritores que realizaram o programa da Hora Literária, estavam ufanos e contentes. Olavo Bilac, nosso mestre e nosso amigo, reaparecendo ao público depois de quatro anos de ausência, fora ouvido e aclamado de pé. Coelho Neto emprestara à nossa impetuosa força moça o prestígio da sua glória. Augusto de Lima, exumando da política a sua nobre musa de pensador, reocupara, ao nosso lado, o seu alto posto nas letras. Martins Fontes, colhendo palmas, dissera, pela primeira vez, os seus versos perfeitos diante de um auditório numeroso. A gentileza das lindas mulheres e o entusiasmo dos homens puseram à fronte de cada poeta uma guirlanda de aplausos. Na demonstração inicial de seu vigor, a Sociedade de Homens de Letras alcançara um rútilo triunfo. As nossas almas resplandeciam como os azuis do céu às luzes do sol. Annibal Theophilo tivera uma e única preocupação: a que lhe causara a responsabilidade de recitar depois de Olavo Bilac, mas, desmentindo os temores da sua modéstia, rendeu-lhe justiça plena a fina cultura dos assistentes. Coelho Neto, por estar doente, retirou-se para sua casa, ao descer do estrado de onde falara. Os outros, depois da festa, enquanto o público saía, reunidos numa saleta interior, fotografaram-se em grupo, para os jornais. Em seguida, saíram Goulart de Andrade e Martins Fontes; dispersaram-se os restantes na vastidão do edifício, e Annibal Theophilo, tendo combinado jantar comigo e Olavo Bilac precisando ir ao Teatro Municipal para receber um dinheiro e desempenhar funções do seu cargo, procurou a cada um de nós e, em termos rápidos, explicou os motivos por que se afastava. Se, depois da festa, enquanto o público saía, Annibal Theophilo demorava no quinto andar para tirar o retrato; se, depois de tira-lo, permanecia para dar uma explicação a Olavo Bilac e se, após havê-la dado, ficava para procurar-me, parece que não deixou os companheiros nem correu a esperar, lá em baixo, no saguão do pavimento térreo, dois espectadores que se retiravam... No momento em que me encontrou, Annibal Theophilo, com incauta serenidade alegre, pôs no meu ombro a sua mão leal e espelhou o seu claro estado de espírito num gracejo alusivo à minha crônica desse dia, chamando-me menino e moço. Separamo-nos... Troquei amabilidades com amigos e colegas; cumprimentei senhoras... Passaram-se minutos... poucos... cinco ou seis... Annibal Theophilo morreu, apagando-se suavemente, no minuto em que Olavo Bilac, Martins Fontes, Gregório Fonseca e Oscar Lopes cercaram a sua maca sob o doloroso teto hospitalar. Antes de ir para a Sociedade Riograndense, o suavíssimo poeta esteve no necrotério da polícia... Nunca saberei traduzir o abalo que me golpeou os sentidos, quando vi, sobre uma pobre mesa úmida, o corpo de Annibal Theophilo com o plácido fulgor de um sorriso nos lábios, tendo o largo peito costurado e o sangue a pingar do crânio – berço de pensamentos generosos, pátria de sonhos e idéias puras! Do saguão do Jornal do Comércio ao Cemitério São Francisco Xavier, no seu último passeio pela terra, o cantor incomparável das Rimas percorreu uma extensa trajetória, mas por onde passava o seu corpo morto, encontravam os que o seguiam o luminoso sulco de amor, que o homem fulgurante abrira na vida e deixava no mundo. (Leal de Souza). Revista Careta nº 366, de 26/06/1915. Triste Visão
19 de junho de 1915, um sábado. Regressava de suas aulas, aluna da Escola Deodoro, à rua Augusto Severo, a filha do poeta, Elisinha, que, nos seus 13 anos de idade, era “a flor mais pura” da vida de Annibal Theophilo. Ao transpor a soleira da porta de sua residência, num sobrado da Avenida Rio Branco, próximo à rua do Ouvidor, a menina viu, nos últimos lances da escada, um vulto vestido de terno escuro. Seria o seu pai. Chamou-o: - Pai, estou chegando! Sem resposta, a menina subiu e dirigiu-se à sua mãe, dona Sinhá, indagando-lhe sobre a presença de Annibal, que quase diariamente ia vê-la àquela hora, quando encerrava seu expediente no Teatro Municipal, levando-lhe bombons e flores. Mal sua mãe dissera estar seu pai numa conferência literária no salão do Jornal do Comércio, ali bem próximo, três estampidos de arma de fogo fizeram-se ouvir. Da janela de sua residência a família de Annibal Theophilo apercebeu-se da desventura. Elisinha não podia compreender o que se acabava de passar. Eram 18 horas, o sol descia frio na tarde de inverno. Nos acordes do Angelus desaparecia uma vida generosa, um poeta na plenitude do seu pensamento, extinguia-se uma força “na imensa mágoa do morrer do dia...” “Quando, reabrindo os olhos, contemplei a fogueira, já as folhas secas se haviam consumido, as derradeiras brasas vasquejavam e do que fora clarão, flamejo alegre e crepito, restava apenas o cineral.” (Coelho Neto) Ato Final Péricles Morais, lá de longe, em Manaus, sofreu o impacto da notícia. Contava depois que, de imediato, começou a delinear e fixar na memória tudo aquilo que viria a publicar nas “Confidências Literárias” sobre Annibal Theophilo, tão viva tinha ele a imagem do amigo. Péricles Morais – que, em 1910, assistira o poeta gravemente doente transcrevera o belo poema “Palavras de um Forte”, agora estava em face do irremediável. Um dia, abrindo o jornal, por entre os telegramas, deparou-se-me a notícia arrepiadora. Fiquei estarrecido. Meu desventurado Annibal Theophilo! E, no desvairo, a imaginação em delírio, como se as represas da harmonia e equilíbrio das minhas forças psíquicas se houvessem rompido, espelharam-se, naquele instante, como na angústia alucinante de um pesadelo, os lances da tragédia. Os meus olhos esgazeados viram e compreenderam a inanidade daquele imenso sacrifício. Trucidado pelo destino lá estava o sonhador infeliz, os olhos vítreos e imobilizados, os lábios lívidos, entreabrindo-se no sarcasmo de um sorriso que parecia zombar da covardia humana, entrecruzadas e regeladas as finas mãos que brindaram astros, e o corpo hirto, que a morte tentaculizara, úmido e trescalante do perfume que Bilac espargira, cumprindo a promessa sagrada. Promessa Cumprida Annibal Theophilo pediu-me, e houve mesmo um juramento entre nós, tanto apreciávamos o mesmo perfume, que sobre o primeiro morto de nossa roda, ao fechar o caixão, se derramaria, no peito, um vidro de “Ideal” de Houbigant, conta Martins Fontes. Annibal era o primeiro a morrer. Seu corpo foi levado para a Sociedade Riograndense, que patrocinou o enterro. Olavo Bilac, em passos lentos, acompanhado de vários escritores, amigos do morto, aproximou-se da mesa onde repousava o corpo e derramou-lhe no peito o perfume, gesto seguido por todos os circunstantes que, conhecendo a promessa, quiseram espontaneamente prestar-lhe a mesma homenagem. Depois, comentando a cena, o poeta da “Via Láctea” explicou que nada mais fizera do que cumprir uma vontade do poeta gaúcho. Este, certa ocasião em que jantavam juntos com outros amigos, narrara um sonho que tivera. Estava preste a morrer e pedia que olhassem pelos seus versos inéditos e que derramassem sobre o seu peito um vidro de “Vitória Essência”. “Bilac, se eu morrer primeiro que tu, em vez de velas em torno do meu corpo, verterás no meu peito um vidro do nosso perfume...” Para Martins Fontes o perfume era o “Ideal” de Houbigant, enquanto Bilac mencionou o “Vitória Essência”. Na verdade, tamanha foi a repercussão da inusitada mas lírica homenagem, que logo as duas marcas tinham desaparecido das vitrines do Rio de Janeiro. Só Deus Saberá Nenhum dos amigos de Annibal Theophilo conseguiu desvendar o “mistério da coroa de flores”. No enterro do poeta, dentre as muitas flores enviadas por amigos e por várias entidades, uma bela coroa despertou a atenção dos presentes. Sem nome que a identificasse, continha os seguintes dizeres: Deus, só Tu saberás da minha grande dor!... Houve, ainda, um momento de emoção. Chega à sala onde se encontrava o corpo do poeta um senhora toda de preto, rosto encoberto de véu. Dirigindo-se até o leito mortuário, beijou-lhe as mãos e a face num leve soluço, para, logo em seguida, sair do recinto, não sendo mais vista. Martins Fontes, muitos anos depois, fala-nos desse episódio, imaginando ser aquela, talvez, a fonte inspiradora de muitos dos belos poemas de Annibal Theophilo. Quem teria sido aquela dama de preto que os amigos também não souberam reconhecer? Seria por certo a “Formosa Dama” do poema selecionado por Olegário Mariano? A Dama E As Flores Mas o mistério continuou. Durante muitos anos, a partir do primeiro aniversário da morte do poeta, uma senhora de véu e toda de preto visitou o saguão do Jornal do Comércio, levando e depositando uma braçada de flores exatamente no local onde Annibal Theophilo perdera a vida. A fantasia e o romantismo do poeta se prolongavam na figura misteriosa. Annibal Theophilo, quem sabe, neste soneto, não estava antecipando a “dama de preto”? Vida Amorosa
Annibal Theophilo teve uma vida amorosa irregular. Casou muito cedo e cedo vieram as desavenças. Boêmio, como era tão comum entre os artistas da época, o poeta não aceitou nunca as queixas e ponderações da esposa inconformada, que o sabia um belo e vistoso homem, cobiçado pelas mulheres. Apesar de tudo, manteve-se discreto, não desfazendo formalmente o compromisso conjugal. Bem moço, ainda cadete, decepcionara-se, na Bahia, com o seu primeiro romance que lhe inspirara os sonetos Desiludido e Conselho. Retratam fielmente a sua desilusão. Depois que lhe nascera o terceiro filho e, no ano seguinte, com o falecimento do pai, Annibal resolveu partir sozinho para a Amazônia. Daquela fase não se têm muitas notícias de seus casos de amor. O seu confidente Péricles Morais achava que a situação social do poeta era “de molde a não alimentar esperanças sentimentais”. Mais tarde, Annibal Theophilo veio a manter ligação amorosa com uma mulher de rara beleza que deixara a Espanha e viera encontra-lo na cidade do Rio de Janeiro, por volta de 1912. Dotada de dons artísticos, atuou durante algum tempo na vida noturna da capital, cantando e dançando nos nossos teatros de revistas, segundo Renato Alvim. A união foi sempre mantida em segredo. Depois, desfeito o romance, a moça se transferiu para São Paulo e jamais voltaram a se encontrar. Mas ao que parece, segundo o depoimento de amigos de Annibal, o seu caso de amor mais sério foi com senhora da sociedade, talvez a misteriosa dama de preto de que falou Martins Fontes. Esta senhora confiara à pessoa de sua intimidade copiosa correspondência que o poeta lhe enviara durante anos e que foi destruída por cuidados que teve a confidente de não causar escândalos ou ferir pessoas inocentes. No dizer de quem a leu, ali “estava a manifestação vibrante de um apaixonado”. Desse romance teria nascido um filho, Moisés, que, anos mais tarde iria se relacionar com Victor, filho da esposa de Annibal Theophilo. Nossa pesquisa não identificou Moisés como filho do poeta.
O Perdão Depois Da Morte E A Desistência Feliz O poeta de Rimas, ao voltar da Europa, tentou por todos os meios reconciliar-se com dona Sinhá. Esbarrou sempre na recusa de um coração amargurado. Só veio a perdoa-lo, entre soluços, quando o viu morto. – Eu te perdôo, Annibal, porque te amei a minha vida toda! Houve ocasião em que o poeta, sentindo não haver possibilidade de reconstruir o casamento, recorreu a um advogado, Dr. Silveira Serpa, para buscar a solução do desquite. Segundo depoimento do advogado, a preocupação de Annibal Theophilo no processo era de que nem de leve fosse atingida a dignidade e a honra de dona Sinhá, a quem só se referia com elogiosas referências. “Era um homem fino e de grandes sentimentos”. Queria que a separação legal se fundasse em desajustes provocados pelo longo tempo em que viveram afastados. Logo depois o poeta desistiria da questão. O destino trágico se encarregou de resolve-la de vez. Despedida
É com o coração estraçoado pela nossa grande e indizível dor comum que vos dirijo a palavra. Por que vos falar? Em transe qual este nenhum verbo diria o que sentimos. Mas há despedidas tão dolorosas que permitem, depois de um abraço, cem abraços, todos os beijos possíveis, um adeus e outro adeus, novas efusões de alma após o amplexo derradeiro, um último gesto de saudade na saudade infinita que nos domina. Quando penso em Annibal Theophilo! Ele merece do meu afeto e da minha admiração um culto espiritual que jamais definirei, tão vários, profundos e complexos são os elementos de que se compõe. Annibal Theophilo, para todos nós, é a nossa mocidade no que olimpicamente a assinalou: a beleza da vida ideal imaginada sobre as torpezas materiais que nos cercavam, o sonho, que jamais se realizará, de uma existência heróica, o princípio do amor, como alma dos seres e das coisas, a elegância do espírito, que hoje pôde ser um verso ou uma frase, que será amanhã um reencontro de paixão que, sejam quais forem estas vicissitudes do mundo, aparecerá sempre entre os homens como um esplendor de belo e de virtude. Quando conheci, era Annibal Theophilo, dentro da nossa geração, um retardatário sublime, um romântico estreme dos vícios românticos, admirável na perfeição parnasiana dos seus carmes, mas que se conservara fiel aos antigos ideais, romântico de alma, que adivinhara Camões, e que, embora novo na expressão verbal e na correção das maneiras, cultivara nas velhas formas da nossa poesia a regra eterna do nosso idealismo. Era um ibérico de índole, atavicamente inclinado aos magnos ímpetos do denodo pessoal, em justas cavalheirescas, esse mimoso lírico brasileiro, tão apaixonado e melancólico, em ideação amorosa. Valente, desprezava as ciladas e guardava no seu existir de proscrito do sonho a mágoa de não contar com as possibilidades de glórias dos Avoengos. Poetava por isso, por não poder lutar como lutavam outrora os perfeitos paladinos da nossa gente. Annibal Theophilo! Se, nesta hora trágica, em que nos separamos, eu vos dissesse tudo o que sei dele! Nobre, sereno, incorruptível, certo da sua força, contente com o seu mérito, amigo de todos os méritos, superior à inveja lívida e à traição negra, eis a forma da sua brilhante personalidade. Nascera para as lutas de frente, para os duros combates, para as vitórias ganhas com lealdade. Não pertencia ao presente e sim ao passado e ao futuro, pois das velhas idades mantinha a nobreza da atitude e ao futuro se prendia por um prenúncio de simpatia humana, superior ao torpe aventureirismo servil que nos invade. Foi-se. Mataram-no covardemente. Bem sabemos como. Evoquemo-lo na simplicidade fúlgida e tocante de uma vida consagrada à arte e ao amor. Deixemos para mais tarde outras preocupações. A memória de Annibal Theophilo viverá em nosso peito... (Alcides Maya) Dois Crepúsculos O poeta paraense Flexa Ribeiro falou no enterro de Annibal Theophilo representando os poetas do Brasil. Foi um belo improviso que cresceu de emoção no cenário crepuscular da tarde de junho. Outro entardecer no Saco de São Francisco, em 1902, tinha inspirado a Annibal Theophilo o seu conhecido soneto “Angelus”. Agora, naquela hora merencória que o poeta tanto amava descia o seu corpo à sepultura. Leal de Souza, na “Careta”, escrevia emocionadamente que por onde passava o féretro “encontravam os que o seguiam o luminoso sulco de amor que o homem fulgurante abrira na vida e deixava no mundo. Acompanharam o enterro ao São Francisco Xavier, no Caju, muitos carros. Enquanto isso, do outro lado da cidade, por informação errada de alguns jornais, comparecia ao cemitério São João Batista grande número de pessoas. Conduzindo coroas e flores, ali esperaram até às 19 horas. Hermes Fontes, em A Noite, de 21/1/1915, escreveu crônica sobre o fato. Por toda parte, na capital e no interior do país, prestaram-se homenagens em memória do escritor. Muitos de seus amigos e admiradores manifestaram o desejo de proteger os familiares do poeta, cujos filhos contavam 13, 15 e 16 anos de idade. Para tanto, imprimiram-se plaquetas e cartões postais com seus famosos poemas “Palavras de um forte”, “Angelus”, “Ruínas”, “A Esperança”, “Irmãs de Caridade”, “Mater” e a célebre “A Cegonha”. Esgotaram-se logo os 3.000 exemplares. Conferências e “Horas Literárias” foram programadas; companhias teatrais lhe dedicaram sessões especiais; Antero de Almeida preparou “Reminiscências”; “O Speculo”, cujo diretor era Vital de Almeida, colaborou com 40% do produto da venda do nº 5-6; a Sociedade de Concertos Sinfônicos, na pessoa de seu presidente, Francisco Nunes, pôs-se à disposição da campanha de coleta de fundos; a imprensa fez a divulgação de todos aqueles espetáculos, que tinham o patrocínio da Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Enfim, foi uma manifestação de solidariedade generosa que sensibilizou e confortou a família. Depois... “Os mortos caminham depressa”, dizia Tobias Barreto. Caminham para o esquecimento. As atuais gerações já não guardam memória do grande poeta. Faça-se justiça aos amigos que desejaram perpetuar, numa placa de bronze, a lembrança de Annibal Theophilo, a ser colocada no saguão do “Jornal do Comércio”. A idéia partiu de Rodolfo Machado e de Belfort de Oliveira, mas não chegou a ser concretizada. O SPECULO nº 5–6, de 1915. Desse número o seu filantrópico diretor proprietário, Vital de Almeida, dará 40% da venda bruta para os filhos de Annibal Theophilo, brilhante colaborador do Speculo, inesperada e vilmente roubado ao carinho daqueles que tanto o estremeciam. A REPÚBLICA, de 21/7/1915. É hoje que se realiza, às 16:30, no Edifício do Jornal do Comércio, na, tão tragicamente assassinado, na porta do edifício onde será realizada essa mesma festa. Programa: - “Conferência” de Gregório Fonseca. - “A Mocidade Cavalheiresca” de Annibal Theophilo - “Angelus” – soneto de A.T. com música do sr. Francisco Chiaffitelli, cantado pelo barítono sr. Francisco Nascimento, acompanhado de violino e piano; recitação de oito poesias de A.T. - “A Esperança” – pelo sr. Alberto de Oliveira - “Palavras de um forte” – pelo sr. Leal de Souza - “Mater” – pelo sr. Olavo Bilac - “Devotamente” – pelo sr. Goulart de Andrade - “Súplica” – pelo sr. Oscar Lopes - “Saudade” – pelo sr. Emílio de Menezes - “Perfeição Ignorada” – pelo sr. Martins Fontes - “O melhor Guia” – pela srta. Rosalina C. Lisboa A Mocidade Cavalheiresca De Annibal Theophilo Conferência realizada no salão do “Jornal do Comércio”, em 21 de julho de 1915, por Gregório Fonseca, um mês depois da morte do poeta e data de seu aniversário. Mais tarde, o autor de Estética nas Batalhas e Ciúme dos Deuses, incluiu a Conferência no seu livro “Heroísmo e Arte”, publicado pela Academia Brasileira de Letras! Quão amarga fora a tristeza da vida se todos a porfiar em arrancadas utilitárias buscassem o conseguimento das vitórias gloriosas no simples apanágio às exigências materiais, almejo medíocre de qualquer consciência inferior. Qual deva ser a diretriz do homem para viver é função mínima da espécie; o que ele deverá amar, eis a discriminação máxima que lhe cumpre fazer. Ciência e moral, arte e poesia, são os dois pólos opostos, delimitando-lhes os feitos. Profética ou científica, a moral traça-lhe o caminho na existência para a ação coletiva ou isolada; a arte, a poesia indica-lhe o que deve amar, sendo o amor a chave única da vida ideal, da grande vida subjetiva. Agir e amar: talvez amar antes de agir, eis o dilema. Carlyle classificou os vates de profetas do amor, o poeta é o vate por excelência. Que seria do mundo sem os poetas! Sem o Himalaia fulgurante donde irradiam a fé e a beleza. Ao alto, no cimo, Dante e Shakespeare, imensuráveis em profundidade, infinitos em vastidão; embaixo à base da altíssima montanha, os que nem versos fizeram, mas, ainda poetas, com uma partícula de Dante ou de Shakespeare, pois tremem de emoção que lhes compreendem as criações divinas. Schopenhauer, pensador e poeta, raciocinadamente atingiu a certeza de que o mundo é mau, e a verdade pior. Um discípulo inconsciente do egrégio pessimista, mais poeta que pensador, deu-nos um antídoto potente ao amargo postulado, afirmando a única verdade bondosa que conhecemos: Se a realidade é má, livremo-nos do Nirvana afinal a que seremos arrastados, sabendo querer a ilusão, saibamos descobrir ilusões extraordinariamente belas e sedutoras, que nos façam amar a vida e ponhamos a inteligência e a energia ao serviço dela. Daí, acrescento, o caráter divino dos poetas ao criarem e descobrirem os pares ideais que embelezam o existir. Não inventa, porém, ilusões que não as vive. Para repousar na montanha sagrada, no sopé confuso ou pouco além, à meia-altura, o predestinado transmuta a existência para um universo simbólico de pensamento e de sonho, onde gira a terra que habita povoada, unicamente, da realidade sedutora que imagina. Esses são os verdadeiros poetas: gloriosos ainda que anônimos; brilhantes, bem que não saibam transformar em luz, em poesia, a chama vívida que internamente os incendeia. Annibal Theophilo foi, exclusivamente – belo e poeta. Conheci-o (e com que saudades o relembro!) em época de adolescência. Quantos anos passaram não sei, nem lhes faço conta. No convívio da admiração e do afeto, o tempo não tem medida: há dias, horas, momentos, que valem por eternidades. A mesma carreira nos seduzira. Quando o exército me recebia, Annibal o abandonava para continuar poeta. O seu talento dificilmente se amoldaria à disciplina férrea do bom estudante, versado em apostilas e cheio de saber catedrático. Forte, corajoso, resistiu ao repúdio do mundo ideal em que se agitava; ao invés de se tornar perito na caça dos logaritmos, continuou, por instinto de eleição, a colheita das belas rimas. O verso brotava-lhe espontâneo; não procurou ser poeta, assim nascera: poesia, romantismo foram-lhe o ar constante, vivificador dos pulmões de atleta. Dominava, atraía pela espontaneidade: alma sem refolhos, os pensamentos não expressos fugiam-lhe pela feição bondosa, lúcidos como através do cristal; irradiava lealdade, o riso era-lhe franco; e o olhar sereno, alevantado, cego às misérias da vida, pairava sempre muito além do seu destino. Conquistei-lhe a intimidade. Certa vez desnudou-se ante meus olhos absortos: o passado, o presente, quimeras, sonhos, paixões, sofrimentos, anelos, saudades, esperanças, tudo me deixou ver, jorrando a “flux” de uma consciência tranqüila, ambiente claro de bondade e beleza... Passei a quere-lo como a um ente raro. Era diferente de nós todos: um enérgico em meio a contemporizadores, robusto entre débeis, sadio ao lado de neurastênicos, alegre ao pé de tristes, satisfeito junto a desconsolados, otimista ante subjetivistas casmurros, crente na vida pela beleza dela, cercado de indiferentes pela dúvida, um apolíneo na serenidade em frente a dionisíacos em meditação...
Traço notável! A Annibal chegavam-lhe do interior, através dos sentidos ilusórios, as sensações produtoras das mais sutis estesias. Devia ser portanto um materialista: - engano manifesto. Sempre foi de um idealismo requintado, povoando o ambiente em que se movia de personagens irreais, agindo ao impulso de sentimentos nobres idênticos aos que o animavam. Era um retardatário sublime, vivendo séculos longe do seu tempo, despreocupado, sem segundos propósitos, na obtenção de todos os pequenos nadas que constituem o deleite do triunfador moderno. Passou insulado numa coletividade em formação, ainda descaracterizada e onde se travam lutas estéreis por ninharias, batalhas que terminam em ruidosas vitórias imorais, pelas armas escusas com que se digladiam os antagonistas. Por isso, nós, os seus amigos, considerávamos Annibal Theophilo imortal, na terra em que medram vicejantes e vivem florescentes, os zaratustras jograis, os super-homens bufões... Por pendor de sangue e raça, ou talvez atavismo inexplicável, que tanto o destacava, o poeta mantinha num meio em aluvião, ainda abarbarado pela natureza tropical não vencida, a linha sóbria e o gesto altivo comum às velhas civilizações; e só agia ao impulso de sentimentos de instintiva bondade, defendendo ardorosamente fracos e infelizes, e com indiferença tratando os potentados. Realizava, em suma, o quixotismo, com bravura e fortaleza, com saúde e equilíbrio. Devera ter nascido em tempos de heroísmo como ato: em avançadas guerreiras, leal, valoroso, seria sempre o primeiro e atingir as escarpas.
Ao artista necessariamente sucederam o trovadorismo, as formas antigas da poesia e empolgaram, e, sem rei a celebrar, cantou a mulher, que, para ele era ainda a dona – “senhora” como a chamava nos versos, com o sentido preciso de ser intangível que ordena e é obedecido. Solene nas suas relações de afeto: ímpetos de amor, paixões, sempre as manteve dentro da moral cavalheiresca de que era paladino. Para o poeta a galanteria obedecia a regras finas, sagradas; o respeito, o culto pela mulher amada eram-lhe um dogma. Diálogos, de amor, só os compreendia à distância, ao luar, entre madressilvas e rosas, como no balcão de Roxame. Não faço literatura: nesta hora, triste pelas sugestões dolorosas, da minha verdade vos digam os que lhe foram íntimos... Saiu da puberdade ferido de amor por formosa castelã, sua primeira e grande musa. Amou-a: impunha respeito aos que dela se aproximavam, velou-lhe o sono de virgem com a carícia dos primeiros versos. A vitória final, contava-a, infalível: Partiria para a Palestina a combater uma cruzada... Ao voltar, coberto de glória, escudo e broquel fulgurando legendas e baladas, a ponte levadiça do castelo baixaria, almenaras iluminariam a noite em clarões de rabate festivo, assomariam às ameias arneses e capacetes, lanças em perfil, no átrio do palácio, músicas e trovas; e, celebrado o himeneu, a castelã esmaecida e frágil cair-lhe-ia nos braços fortes e vitoriosos, para viverem (suave miragem, terna ilusão) num solar encantado. A vontade paterna armada do critério do bom senso burguês e do conforto, torceu, entre lágrimas, a inclinação infantil da castelã: surgira um casamento conveniente. O romance, ou melhor, o rimance, continua: um rival desventurado, ignorando-lhe a desdita, atribuindo a sua exclusivamente ao poeta, espera-o, sinistro, de alcatéia, ao fundo de um corredor ermo e escuro. Annibal, cuja acuidade de sentidos assombrava, - olhar que via sem luz – compreendeu de relance a tragédia: uma lâmina fulgira; de um salto caiu nos braços do desconfortado, exclamando dramático: somos dois infelizes; e juntos soluçaram mágoas comuns à noite inteira. Depois, como oblata de fundo da alma ao amor santificado, o poeta festejava, cultuando-o em poemas admiráveis, o mês de Maio, como o da suprema renúncia, recordação da nobre e cavalheiresca atitude de homens de honra. Como era diferente de nós todos! Imperativo e ágil, encarando os perigos, impávido ante a sorte má, sereno na dor, esfuziante na alegria, jamais em retirada, movimento incompatível aos altivos, nobre na vitória, aceitando com heroísmo a derrota, terrível no ímpeto, Annibal Theophilo foi sempre um tímido em face das mulheres, as “Senhoras” dos seus versos. Don Juan não o seduzia: no meio antigo em que se agitava, a figura torturada do legendário de Tirso de Molina não tinha lugar; o poeta viveu antes do herói manchego, e, somente depois da morte do Quixote, após o declínio da fé, roto o equilíbrio entre a crença divina e o amor humano, extinta a galanteria, emudecida a lira dos trovadores, desertas as estradas dos peregrinos, foi que D. Juan se transformou em grande símbolo, esfinge de enigmas infinitos. O discurso do método de Descartes, ciclópico, abalando alicerces teológicos, ainda mais lhe alteou o trono; Fausto, Don Juan – dúvida e amor, passaram a dominar como incógnitas eternas. Mas Annibal não compreendeu, nem se preocupou com esses estados complexos de consciência humana: amava dentro de um código, agia entre figuras, sentimentos e alegoria de tempos idos; queria a vida pela vida: seiva sadia corria-lhe pelas artérias vigorosas; os sentidos perspicazes em excesso, sonorizavam-lhe as emoções vindas do exterior, numa sinfonia de prazer robusto. Apercebia, com requintes felizes, as mais tênues delicadezas de olfato: o aroma cantava-lhe no subconsciente numa vasta gama de sensações voluptuosas, imperceptíveis aos demais; delícias de paladar, inspiravam-lhe versos camonianos; à mesa, distribuindo afagos lânguidos de olhar às iguarias, recitava madrigais às gulodices... Annibal podia repetir, sentidamente, os dolorosos versos do grande épico português, que ele tanto venerava: – Nascer para viver e para a vida – Faltar-me quanto o mundo tem para ela! Por movimento de vontade inexplicável, Annibal Theophilo despertou do sonho encantado: o poeta jamais pensara numa colocação sólida na vida e inesperadamente resolveu ser homem prático, adquirir uma grande fortuna. Como?! Indagávamos pasmados. Cortejar para vencer, elogiar para subir; era-lhe isso incompatível com o caráter. Qual será, pois, o roteiro secreto, o novo sézamo que vai dar diferente direção ao destino de Annibal? Irá partir a descobertas, a conquistas? O México... Mas o México jaz esgotado pelos descendentes de Cortez. Pizarro é também uma legenda soterrada ao peso do ouro dos Incas. O El-Dorado da Califórnia, americanizado pela máquina a vapor, entrou no regime de sociedade anônima. Fernão Dias Paes Leme morreu, ocultando os tesouros das suas esmeraldas falsas... E resoluto, Annibal partiu para o desconhecido, para o caos: mundo de aluvião ainda em período genesíaco, para o Amazonas, Pactolo caudaloso do ouro negro! Seduzira-o a luta estranha com elementos em formação, a sua mocidade forte sentia-se atraída ao combate com a natureza bravia, indomável. Na solidão das florestas virgens, o Quixote, que nem aos menos se fizera acompanhar de Sancho, tesoureiro astuto, contava vencer, dominar, amontoado tesouros. Fantasiava-lhe a imaginação triunfos inevitáveis: pelos igarapés e ribeirões, pelos rios correntosos, em jangadas e gaiolas, o ouro negro, propriedade do poeta, descia para abarrotar os mercados do mundo... Anos de silêncio em torno do bandeirante... Certo dia chega ao Rio, vindo desses fins longínquos um amigo comum e dá-nos notícias do ausente querido. Bebíamos-lhe sôfregos de saudades, as palavras. E soubemos que, às nascentes do Madeira, lá onde a selva é mais densa e a vida mais perigosa, pelas febres mortais vencedoras dos audazes, lá no inferno verde do desconforto, Annibal Theophilo, o conquistador de ouro, era mestre-escola! Entre brutalidades naturais, feras sanhudas, árvores-florestas, num meio de caverna propício a Caliban, Annibal fazia cantos reais, baladas, vilancetes, forma antiga de lirismo romântico e ensinava o abc, iluminando consciências primitivas. Como era diferente de nós todos. Abraçávamo-lo, em breve, combalido pelo impaludismo: noites de delírio e febre intensa, mas, o seu organismo tão prontamente venceu o mal, e, restituído à saúde, adoravelmente, bondosamente, falava-nos em liquidações, intermediários, letras, casas aviadoras, numa tecnologia profissional que nos pasmava e de novo partiria a liquidar a sua fortuna. Passa o tempo. De repente soubemo-lo em Espanha. Imaginei do nosso espanto! Annibal em Burgos, Granada, Andaluzia, visitando os lugares sagrados onde nascera e florira a sua fé! Pelas emoções recebidas atingiu ao vértice da felicidade. Contemplar os históricos horizontes, pisar o solo lendário em que realmente se agitaram as figuras românticas que lhe encheram o cérebro de sonhos, terra celebrada onde lutaram e viveram seus avós maternas, os nobres Torres y Espinosa... Quem sabe! Talvez naquela mesma volta de estrada dos arredores de Burgos em que o neto extasiado, assiste ao desfilar das saleirosas, olhos negros a fulgir na sombra da mantilha; quem sabe se, naquele mesmo local, um antepassado distante do poeta, um forte Torres y Espinosa d’áureos tempos, coberto de ferro e lança enristada, não obrigara aos cavaleiros que entravam na cidade a jurar pela beleza da sua dama, tendo ao fim do dia conquistado um vasto troféu de escudos, piques e alabardas. Os meses de Annibal Theophilo peregrino em Espanha foram-lhe o tempo de suprema ventura, formosas inclinações que o sangue e a nobre estirpe semearam, afloravam no meio apropriado. Em Sevilha, numa tourada: o poeta bramindo, ao sol, a cabeça descoberta, o seu entusiasmo desmedido a espada triunfante, herói da tarde; e, depois, sorrindo feliz ao observar a languidez das niñas... A Espanha absorveu-o; nem se lembrou de visitar, ali tão perto, Paris, metrópole do século, onde o mundo moderno e a idéia nova sarabandam uma Coréia fantástica... Esgotado o mealheiro parco do Creso amazônico, conquistador quimérico de riquezas, tivemo-lo outra vez ao nosso lado, bom como sempre, sonhador como nunca, a distribuir, perdulário, entre os íntimos, o tesouro avaramente acumulado: “Rimas”, livro de versos que ao passar imprimira em Portugal. Era assim o nosso irmão poeta. Depois... Depois... Depois... para que recordar. Depois, neste salão, deste lugar, Annibal Theophilo, sereno, apolíneo, cavalheiresco, sorrindo às mulheres e aos amigos, ao amor e à amizade, disse a sua última estrofe: Tão bem se reflete todo o iluminado destino de um homem superior, destino tão consciente, tão exato, tão perfeito, que o próprio poeta o lera ao fim do dia...
Selecionara, cuidadosamente, entre os lavores mais finos a sua obra de artista, esses versos admiráveis com que brindou pela última vez os seus ouvintes, essa mesma sociedade culta que acorrera ao salão nobre do “Jornal do Comércio”, atraída pelos primores de sua musa genial e cavalheiresca. Através dessa poesia, que ele disse com um sentimento próprio de sua feição original, quem poderia supor fosse a despedida do poeta na hora amarga de tristeza? (Gregório da Fonseca) A Maldade Humana Annibal Theophilo, que era profundamente bom, que possuía uma bondade verdadeiramente superior, vivia presa, por isso mesmo, de uma séria preocupação sobre a maldade humana. É um fenômeno raro, este nos nossos dias; é mesmo uma coisa que se não compreende – andar alguém, nesta época, a se preocupar com o que há de inferior nos homens, mas Annibal não era um homem do seu tempo. Já os espíritos que bem o conheceram afirmaram todos que ele era, no nosso tempo, frívolo e estéril, um desgarrado de outra idade encantadora e fecunda, em que havia bondade, heroísmo e beleza. Quando ele se manifestava, era desta forma: “Oh! Ser Deus e fazer olhar contrito O bem que encerras, cândido e infinito Descer em luar suavíssimo, do azul, Sobre o mal que anda em todo o pensamento, Dando tréguas a todo o sofrimento, Purificando todo este paul!...” Este é um trecho do capítulo do livro de Antero de Almeida Reminiscências, dedicado a Annibal Theophilo. O autor, num gesto nobre, queria com a arrecadação auxiliar a família do poeta... “Bastará para isso que à aquisição corresponda um óbolo qualquer, destinado aos filhos do saudoso intelectual”. Um Crepúsculo Sobre o crime escreveu Victorio de Castro em Fon-Fon de 26/6/1915. A semana que findou não poderia ter um fecho nem de mais tristeza, nem de maior vergonha. A cidade como que toda se cobriu de um longo véu de crepe para esconder as suas lágrimas de dor e de pudor. Os crimes de toda a sorte que vão num crescendo diário, a fazer da estatística criminal do Rio uma lista interminável de outros tantos atentados ao nosso nome de povo civilizado, não poderia ter culminância mais alta do que a que atingiram com o assassinato de sábado passado, à porta do Jornal do Comércio. As grandes cidades, todas, de quando em quando, são abaladas por um grande crime, geralmente de caráter passional, é certo. Uma vez por outra uma companhia de delinqüentes realiza um atentado-monstro que abala a sociedade. Um caso mais marcado de degenerescência surpreende e assombra pela maldade do seu ineditismo. Raras vezes, porém, um caso como o que teve por cenário o andar térreo do Jornal do Comércio, ao cair da noite de sábado passado, terá chegado ao nosso conhecimento através do noticiário dos jornais ou de telegramas. Porque – e bem sentidamente o dizemos – o ato injustificável que encerrou violentamente a vida a um dos espíritos mais completos de artista, e atirou ao calabouço uma figura do nosso meio intelectual e da representação nacional, longe de ser apenas um sintoma do momento de inconsciências e desmanchos de organização social em que vivemos desde tempos para cá, reflete, até certo ponto, o conceito deprimente em que uma grande parte do público tem a Justiça do país, tantas vezes tem ela falhado na sua missão... Jamais um desgraçado incompreendido no convívio dos outros hei de ser... Abre assim um canto real de Annibal Theophilo, diante de cuja tumba, mal fechada ainda, e mais do que de dor, amigos ou simples irmãos de crenças e de sonhos que dele tenhamos sido em vida, todos choramos agora envergonhados, na saudade do seu belo espírito e do seu grande coração. O Poema São João Annibal Theophilo havia combinado com Raul Pederneiras a ilustração de um soneto seu, que devia ser publicado no dia 24 de junho de 1915. Raul recebeu o soneto e fez magnífica alegoria. Trata-se do poema “São João”, dedicado ao caricaturista famosos e que, realmente, veio a ser publicado no dia de São João, cinco dias depois da morte de Annibal Theophilo, em “O Imparcial”. À Passagem De Um Morto Crônica publicada na Careta de 18/9/1915, assinada por Leal de Souza. Nascera para o exercício ativo do mando. O seu arrogante penacho de chefe não foi arrancado pelo azar das combinações aos sufrágios das assembléias. Conquistou-o,
triunfando ao fragor das armas, a sua industriosa audácia de guerrilheiro; manteve-o, triunfante nas justas da paz, a sua penetrante argúcia política. Era a força, atraía e amparava as fraquezas, unindo-as para engrossar a própria robustez. Não serei eu, adversário do caudilho extinto, quem lhe negue, à beira do seu túmulo, o epíteto glorioso de grande, mas creio que ele o teria sido sem contestação se as especiais circunstâncias peculiares ao nosso meio não lhe fossem desfavoráveis. A tendência natural das almas heróicas é para a grandeza das ações sublimes, porém o general estava chumbado ao solo dos interesses pelos pigmeus que carregava abraçados às suas rijas pernas de Hércules. Era um valente, e, como Annibal Theophilo, morreu à traição, ferido pelas costas. No enlutado recinto senatorial, com os olhos em lágrimas, diante do seu esbelto corpo apunhalado, a sua nobre viúva dizia: “ele, que era tão valente, nem ao menos viu quem o matou.” Lendo estas aflitas palavras, no meu espírito, com as tintas sombrias do desespero, retracei uma cena semelhante: No horrível necrotério da Polícia, na triste manhã de 20 de junho, diante do cadáver de Annibal Theophilo, que se estendia, ainda nu, sobre a umidade fria de uma pobre mesa sem ornatos, um poeta, com os olhos em lágrimas, dirigindo-se a outros poetas e apontando para o inerte peito do assassinado dizia: “ele era tão valente e morreu sem ver quem o matou.” Hoje, rudemente atingido pelo traiçoeiro punhal que abateu o ilustre chefe conservador, os seus desolados amigos, ante as ineptas simpatias testemunhadas ao delirante assassino político, experimentam e conhecem a sagrada indignação que a nós, amigos de Annibal Theophilo, sacudiu e inflamou quando, pressurosos, os correligionários da vítima de agora, sem piedade pelo assassinado de ontem, ergueram sobre a cabeça e estenderam aos pés de (outro assassino), como escudos de bronze e moles tapetes cariciosos, as imorais proteções da política. Quem já vestiu os lutos talhados sobre corpos amigos por infames punhos assassinos, não aplaude os golpes homicidas. Nós, os que pedimos justiça contra o matador de Annibal Theophilo, não reconhecemos o direito do crime, e, serenamente, inflexíveis, pedimo-la também contra o matador de Pinheiro Machado. Leal de Souza, que sempre lembrava o amigo, numa conferência realizada em 26/12/1917, na cidade de Santana do Livramento e mais tarde publicada no livro “Romaria da Saudade”, assim se referia a Annibal Theophilo: Annibal Theophilo gemia lastimosos cantos de amor, mas não celebrava doloridas fantasias geradas nas delicadezas recônditas da alma, carregava sobre os possantes ombros de sonhador o peso real de uma desgraça bruta e em toda a sua obra, através de sua vida, liricamente deplorou a ausência da mulher que amou, por quem foi amado e que lhe negara ruinoso instante de subitânea catástrofe financeira. Anteriormente, em 4 de setembro de 1917 no Rio de Janeiro, o autor de “Bosque Sagrado”, sob os auspícios da Sociedade Brasileira de Homens de Letras, no Salão Nobre do Jornal do Comércio, proferiu uma conferência, “Musa Contemporânea”, cujas últimas palavras recordavam o episódio trágico: E não preciso sair deste edifício, para abençoar, ó Musa, a tua bondade diligente e heróica. Basta-me evocar às portas deste palácio, um fim elegante de festa, num declínio lutuoso de tarde, erguendo nas frágeis mãos afagadoras a abatida fronte de Annibal Theophilo. A Morte Que Desejava Em roda íntima conversando sobre vários assuntos, certa feita Annibal Theophilo falou da morte. Queria ter uma morte bonita, dizia: “Seria a suprema ventura morrer salvando uma criança ou defendendo um filho.” Consta a revelação do jornal “A Ordem”, de 22/6/1915. Esse desejo, comentava a notícia, “é ainda uma afirmação da nobreza do seu caráter, de sua grande alma e de seu espírito superior.” Não foi salvando uma criança ou protegendo um filho que o poeta morreu. Mas, tendo tomado a decisão de romper relações com o seu futuro algoz, para defender a honra de um amigo ofendido, veio afinal a ter a morte gloriosa que desejava. “Os homens bravos e altaneiros são as vítimas prediletas do destino.” Triste Coincidência A Secretaria do Teatro Municipal fora ocupada, antes de Annibal Theophilo, por João de Deus Freitas e Aristeu Dantas. O primeiro, vivendo dolorosos problemas íntimos, suicidou-se; o segundo, tal como noticiou “O Imparcial”, de 20/6/1915, quando examinava uma arma, matou-se acidentalmente. O terceiro ocupante do cargo, poeta de “A Cegonha”, também sucumbiu de maneira cruenta. 1915 foi um ano de trágicos acontecimentos para a sociedade brasileira. No mês de maio, o poeta paulistas Batista Cepelos, radicado no Rio de Janeiro, autor de Os Bandeirantes, obra que despertara a atenção da crítica pelo seu sentido de brasilidade, suicidou-se em Santa Teresa. No mês seguinte, morreria o poeta de Via Sacra, Marcelo Gama, num acidente na via férrea da Central. Poucos dias depois, era assassinado Annibal Theophilo. No mês de setembro, num outro crime, sucumbia Pinheiro Machado. |
À Ausente
Chove. O dia declina. Opresso de saudade, Sozinho, eis-me a cismar na minha soledade Atormentado, o firmamento Parece a luz difusa em zimbório de estanho Pestanejam fuzis. Ruge, em ríspido assanho Torcendo as árvores, o vento Oh! Amar e estar só nesses dias sombrios! Têm-se ímpetos no peito e os dedos tremem frios... Quer-se chorar, e tarda o pranto. Nubla-se o olhar, queda-se imoto, o lábio mudo Vem a impressão de que começa o fim de tudo E, em ânsia espera-se um espanto!... Tão longe um do outro! Nós... E, fria, indiferente Monótona, a chorar, cai lá fora, em torrente, A água, e, barrenta, alaga as ruas... Mas a saudade é um bem, triste embora, pois vejo Que em sua névoa lilás, como um anjo, em adejo Diante de mim, vaga, flutuas Ah! Basta de sofrer! Tudo em redor sacia N’água que cai a sede em que se debatia... Que sede, amor, em tanta mágoa! Tu que me prometeste a esta sede infinita Vem leni-la. Que importa o insulto e a humana grita, Minha divina gota d’água! Hora Literária realizada no Salão Nobre do Jornal do Comércio. Flagrante da assistência que compareceu ao espetáculo organizado pela Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Nessa tarde o poeta Annibal Theophilo fez a sua última apresentação em público, quando declamou o poema Ausente:
“...Vem a impressão de que começa o fim de tudo E, em ânsia, espera-se um espanto...” FLOR DE LUTO Toda de negro, de pesado luto. Estáveis na hora em que vos vi de frente A vez primeira – um rápido minuto – Vínheis branca, severa, indiferente... Numa névoa fugiu-me o senso arguto Quando a essência que usais senti no ambiente. E olhamo-nos. E de pesado luto Senti no peito o coração tremente. E, mudo, e, abstrato, a olhar-vos o impoluto Alvor do rosto, e do negro vestuário, Trevas de seda, Angélica estatura Vossa envolvendo num pesado luto Julguei ver, a emergir de um funerário Crepe, uma rosa de infinita alvura. Saída do corpo do poeta de “A Cegonha”, da Sociedade Sul-Riograndense, na Avenida Rio Branco, para o Cemitério São Francisco Xavier. Aparecem Alcides Maya, Oscar Lopes, Alberto de Oliveira, Raul Cardoso, Olavo Bilac, Martins Fontes, Heitor Lima, Gregório Fonseca e Raul Pederneira.
Daqui para a morte – Esta é a última fotografia de Annibal Theophilo, entre os companheiros que tomaram parte na “Hora Literária”, organizada pela Sociedade Brasileira de Homens de Letras.
Minutos depois, dirigindo-se para a Secretaria do Teatro Municipal, onde deveria realizar o pagamento do pessoal, o poeta tombou morto, no saguão do “Jornal do Comércio”, na Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, 19 de junho de 1915, 18 horas. Revista Careta nº 366, de 26/06/1915. (Leal de Souza) Hora Literária – Organizada para angariar um pecúlio para os filhos do poeta Annibal Theophilo. Teve lugar no Salão Nobre do Jornal do Comércio, sob os auspícios da Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Gregório Fonseca falou sobre “A mocidade cavalheiresca de Annibal Theophilo”; Alberto de Oliveira declamou “A Esperança”; Goulart de Andrade disse “Devotamente”; “Perfeição Ignorada” foi interpretada por Martins Fontes; Emílio de Menezes recitou “Saudades”; “Súplica” foi revivida por Oscar Lopes; “Mater” coube a Olavo Bilac; “O melhor guia” foi recitada pela Srtª. Coelho Lisboa e, finalmente, “Palavras de um forte” teve como intérprete Leal de Souza. O maestro Chiaffitelli musicou o soneto “Angelus”. O canto esteve a cargo do barítono Frederico Nascimento, acompanhado de violino e piano. Na foto, além dos nomes citados, aparece, ainda, o poeta mineiro Augusto de Lima.
Ilustração do soneto São João, feita por Raul Pederneiras.
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As Inverídicas Memórias
Ao chegarmos ao doloroso capítulo da morte de Annibal Theophilo, há de socorrer-nos a serenidade capaz de impedir que a mágoa se transforme em anátema. O objetivo deste livro, porém, se de uma parte é quebrar o silêncio que tem ensombrado a memória do grande poeta, impedindo que se reconheça o lugar de destaque a que tem direito na literatura brasileira, de outra é restaurar a verdade dos fatos sobre o crime, distorcidos de tal modo, que o algoz é apresentado como inocente e a vítima como culpado.
Para o julgamento definitivo da história devem ser ouvidos os numerosos depoimentos que recolhemos em anos de pesquisa, alguns com extrema dificuldade, pois não raro tivemos que vencer comodismos, ressentimentos, compromissos de amizade, ou compreensíveis escrúpulos de reviver as amargas ocorrências. Mas pacientemente compusemos o painel das provas. Julgue o leitor.
O autor do crime, em determinado trecho de suas memórias, refere-se a Annibal Theophilo como pessoa de quem “nunca ouvira falar, cujo nome me era completamente desconhecido”. Afirma que “nunca o vira, não escrevia em jornais nem trabalhava em redações, não militava propriamente nas letras, não exercia função pública ou particular”. A inverdade chega a ser despautério. Annibal bem jovem já participava das “horas literárias”, dos “salões”; freqüentava as livrarias, clubes e confeitarias, ao lado dos famosos poetas e escritores, que tanto marcaram época na nossa boêmia literária; pertencera ao Centro Cearense, em Fortaleza, e à Mina Literária, em Belém; fundara e dirigira O Tugúrio, revista literária, e O Bode, revista humorística, no Rio de Janeiro; no Ceará colaborara em A Pena, Iracema, no Ceará Ilustrado, Almanaque Ilustrado, Almanaque e jornal O Comércio; escreveu em A Mina e Olho da rua, de Belém; pertencera ao corpo de redação da Careta e Fon-Fon; publicara poemas na Revista Brasileira, Revista da Semana; fizera conferência no salão do Jornal do Comércio; em 1912, quando voltou da Europa, foi ocupar posição de relevo na Secretaria do Teatro Municipal, onde trabalhou até o dia da sua morte; foi fundador da Sociedade Brasileira de Homens de Letras, com participação, inclusive, na sua administração; conquistara verdadeiro renome literário com a publicação de A Cegonha, soneto tantas vezes publicado e premiado; granjeou fama como declamador.
Não, não era um escritor anônimo. Muito menos um desconhecido do criminoso, que com ele convivia em rodas literárias de maior prestígio da época, como a que freqüentava a casa de Coelho Neto, onde tiveram lugar os fatos que levaram ao crime.
As Razões Do Crime
O inverídico memorialista, por motivos que a psicologia pode explicar, e que estariam ligados, segundo o jornal A Província de Pernambuco, edição de 21 de junho de 1915, à recusa do General Dantas Barreto de atender ao pedido de Coelho Neto para introduzi-lo na política do Estado, resolvera, a partir de certo momento, alcançar o escritor maranhense e a sua própria família com críticas, irreverências e até desrespeito. (Reproduzindo depoimento de Coelho Neto, em A Noite, de 20/6/1915)
Procedimento tão estranho, partindo de quem vinha sendo recebido no próprio lar do escritor, com a acolhedora fidalguia por todos reconhecida, foi censurado e repelido pelos amigos de Coelho Neto, entre os quais Annibal Theophilo, que, nobre e bravo como sempre, disse frontalmente ao agressor:
– O senhor não é mais digno da minha amizade. Não aceitarei mais o seu cumprimento.
Sobre o episódio o testemunho definitivo é do próprio Coelho Neto, publicado na imprensa (A Época, de 21 de junho de 1915 e A Noite, de 20 de junho de 1915), logo depois da morte de Annibal Theophilo:
De certo tempo para cá, começou a mostrar que, se era em nossa presença todo ele gentileza, quando saía fazia comentários desagradáveis a respeito de cada um de nós. Soubemos do fato e logo resolvemos expulsar de nosso meio o mau elemento. Entre os meus amigos revoltados com isso, o mais indignado era Annibal Theophilo, tipo perfeito de homem íntegro e espírito altivo, que resolveu cortar relações com aquele a quem protegera desde a sua chegada aqui no Rio de Janeiro. (A Noite, de 20/6/1915) Depoimento no Processo. Annibal Theophilo intercedeu junto a João Lage, proprietário de O País, no sentido de incluir Gilberto Amado no corpo de redatores daquele jornal.
Confronte-se a afirmação de Coelho Neto de que Annibal protegera o seu desafeto com a alegação deste que mal o conhecia.
Como justificativa do crime as citadas memórias são pródigas em referências à suposta perseguição que Annibal Theophilo movia ao criminoso, insultando-o, ameaçando-o com castigos físicos. Ora, não era esse o temperamento do poeta. Já traçamos, com apoio em múltiplos episódios, as linhas mestras do seu caráter. Era capaz e arroubos, de gestos heróicos, desprendidos, mas não alimentava ódios. Claro, recusou a amizade do agressor da casa e da honra do seu amigo, mas não tinha por que mover-lhe perseguição contumaz. O escritor Luís Edmundo, ao comentar o crime em entrevista ao jornal A Noite, publicada em 22/6/1915, afirmou taxativamente, com isso desmentindo as declarações do criminoso, no depoimento policial, que Annibal “não perseguia o seu assassino”. Relata ocorrência, verificada dias antes, quando os três se encontraram na Avenida, em que percebeu da parte de Annibal em relação ao terceiro personagem, não ódio ou vingança, mas apenas indiferença. Acrescentou enfaticamente, “insuspeito como sou, afirmo, perfeitamente documentado, que o proclamado espírito de perseguição nunca existiu... Sob a minha palavra de honra, afirmo”. Luís Edmundo. Depoimentos repetidos em outros órgãos da imprensa.
Anos mais tarde, 40 e poucos anos mais tarde, Luis Edmundo no seu livro de memórias procura defender ou justificar a ação criminosa de Gilberto Amado, já então projetado nas letras, na política e na diplomacia. Diz que “sendo míope, tomou o cumprimento como a ele dirigido, retribuindo risonho, erguendo o braço e agitando a mão”. Quanto a Annibal, teria reagido “escandalosamente, de sobrolho franzido, acentuando as palavras que lhe saem da boca num diapasão que a todos, de certo modo, impressiona e aturde...” “Rio de Janeiro do meu tempo...”
Um crime não se justifica por um cumprimento mal compreendido ou pelo tom de voz da vítima. A explicação acoberta conveniência de amizade, senão outras, e lamentavelmente quando fomos procurar Luis Edmundo em sua residência para colher dele, bem já distante das paixões, um depoimento definitivo, não conseguimos alcançar o contorno nítido da sua posição. Não se lembrava dos depoimentos de 1915, diante das provas que lhe mostrávamos. Mas, com nitidez de detalhes, lembrou-se de momentos vários da vida brasileira do início do século: da organização da Sociedade Brasileira de Homens de Letras e seus componentes; das reuniões na rua do Rozo, casa de Coelho Neto; dos desencontros políticos entre republicanos e monarquistas; da sociedade que desfilava ao longo da avenida Central, artéria efervescente com ares europeizados; etc. Só não se lembrava dos depoimentos publicados em 1915. Lembrou-se, ainda, diga-se, da cena em que os literatos reunidos, cumprindo um pacto, derramaram um frasco do perfume Ideal de Houbigant no peito de Annibal Theophilo morto, inclusive ele, Luis Edmundo. Cena essa comentada por toda imprensa; publicada em livros. Só Magalhães Júnior nega e tenta ridicularizar Martins Fontes, chamando-o de mitômano, por repeti-la em livro. De nossa longa conversa, pouco podemos revelar aqui, já que, como pesquisador histórico, faltam-nos os documentos comprobatórios que nos protejam. Mas, houve um momento em que Luís Edmundo reconheceu não ter sido justo com Annibal Theophilo.
Ao autor de “O Rio de Janeiro do meu tempo” restou-nos dizer que revelaríamos em nosso trabalho os depoimentos de 1915 ao lado do que publicara em suas memórias quarenta e poucos anos depois da tragédia.
Luís Edmundo reatara amizade com Gilberto Amado.
Depois de longo depoimento, quando nada perguntávamos, e muito ouvíamos, precisamos perguntar a Luís Edmundo: Por que tanta agressividade com Annibal Theophilo, no seu livro de memórias “Rio de Janeiro do meu tempo?...” As palavras ali expostas não condizem com o seu estilo, nem com o seu temperamento, temos certeza!... Quem escreveu essas páginas, Luís Edmundo?!
Um profundo silêncio invadiu o ambiente...
Luís Edmundo ofereceu-nos, com dedicatória, o seu livro Poesias (19 de novembro de 1961). E completou: Professor, cumpra com a sua missão... Partimos...
Momento Decisivo
Do dramático ao emocional – confessamos – esse episódio deu-nos força bastante para completarmos a organização destas páginas. Deflagrava-se, então, o doloroso processo de reconstrução da imagem do poeta de Angelus, contra erros e injustiças repetidos por escritores famosos.
Enfrentamos um verdadeiro complô subterrâneo que se expunha ardilosamente, arquitetado contra a figura de A.T. Havia, de fato, a deliberada intenção de elimina-lo moral e intelectualmente da vida cultural brasileira – e o tentaram por longo tempo. Mas não se perpetuará, como previa Carlos Drummond de Andrade:
Aquele Crime
Aquele crime ficou ignorado longos anos, e, quando se espalhou a notícia, nem o criminoso vivia mais, e todas as testemunhas que possivelmente estariam em condições de esclarecer alguma coisa tinham morrido. A vítima fora uma pessoa muito amada de todos, mas pensava-se que tivera morte natural. Os papéis encontrados por acaso revelavam entretanto um caso que encheu a todos de estupefação.
Pela primeira vez se positivava a execução de um crime perfeito, mas tão perfeito mesmo, que o autor se decidira a revela-lo, 50 anos após o delito, naqueles papéis que matematicamente levariam meio século a serem encontrados. Como aconteceu.
Chegou-se a conclusão que não havia motivo algum para o crime, senão esse de ser tão bem planejado e consumado que ninguém jamais descobriria o criminoso e muito menos o crime, se ele próprio não o concebesse como obra-prima, destinada ao futuro. No fundo, um vaidoso, crente na posteridade. Jornal do Brasil – Caderno B – Rio, 18 de setembro de 1979.
Assim termina
A história de uma viagem...
Todos viram e ouviram...
Procurem um remédio
E nunca sigam a regra
Que está mal
“A Exceção e a Regra – Bertold Brecht.
A versão do autor do crime, por displicência ou má fé, vem sendo repetida por historiadores e críticos. Fernando Jorge, em Vida e Poesia de Olavo Bilac, insiste na falsa alegação de que Annibal Theophilo procurava insultar e humilhar o seu confrade. Não tivesse o livro outras imperfeições, teria esta a desmerece-lo inteiramente. Afirmação apressada, colhida das razões do autor do crime para inocentar-se, como de fato aconteceu. Se a Fernando Jorge animasse o desejo de fazer história, honrando a pesquisa, teria, por exemplo, recolhido o depoimento do próprio Bilac, o seu biografado, para verificar que nem Annibal vinha perseguindo o seu desafeto, nem aquele dia trágico estava movido por qualquer sentimento de cólera, sequer irritação.
Raymundo Magalhães Júnior, no livro “Olavo Bilac e sua época” (1974), não esconde a sua parcialidade. Apesar de transcrever o depoimento do poeta de Tarde, incorpora as versões desairosas sobre a personalidade de Annibal Theophilo, a quem chama de comensal de Coelho Neto, “turbulento e perseguidor implacável do seu desafeto”. Culmina por atribuir-lhe, no episódio do cumprimento que deflagrou o crime, uma frase ofensiva, que, entretanto, não foi proferida segundo todos os testemunhos válidos. É preciso, para honra da história da literatura, retificar essa versão mentirosa de memorialistas sem compromisso com a pesquisa histórica, comodistas, repetidores da infâmia, coniventes com a farsa.
Levamos a Magalhães Júnior os depoimentos de Luís Edmundo, publicados em órgãos da imprensa de 1915.
Disse-nos: “Colega, sou amigo de Gilberto Amado”... Sem comentários!...
Aprendemos um pouco mais o quanto é fraca a natureza humana.
Jamais negamos que Annibal Theophilo repudiou a amizade de Gilberto Amado depois dos acontecimentos já relatados. Coelho Neto ajudou e protegeu Gilberto Amado quando de sua vinda para o Rio de Janeiro, e teve o apoio de muitos daqueles que freqüentavam a casa da rua do Rozo e da República das Laranjeiras, sob a liderança do positivista Alcides Maya. Acolheram-no como um companheiro leal. Se fatos graves aconteceram, a reação afastou-o daquele convívio. Muitos literatos, solidários com Coelho Neto e Alcides Maya, afastaram-se de Gilberto Amado, dentre eles – Annibal Theophilo que, com franqueza comunicou-lhe não aceitar mais o seu cumprimento. O seu sentimento de desprezo, este, por certo, levaria à revolta com arma de fogo mortal que eliminaria a vida do poeta de “Rimas”.
Annibal Theophilo ocupou posição de destaque na administração da Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Certa feita, Oscar Lopes, seu presidente, indagou de Annibal sobre como ele via a presença de Gilberto Amado na Entidade:
Vejo-o com indiferença, respondeu. (Depoimento fls 52 do Processo)
Olavo Bilac e Annibal Theophilo conversavam na Avenida Central, quando deles se aproximou Gilberto Amado. O poeta afastou-se para o lado convencido que o assunto não lhe interessaria (Depoimento e testemunho de Olavo Bilac – Autos do Processo fls 48-132). Os depoimentos de Jorge Schmidt e de Leal de Souza, da redação da Revista Careta, invalidam qualquer insinuação de que Annibal Theophilo perseguia e humilhava Gilberto Amado. Luís Edmundo, enfaticamente acrescenta “insuspeito como sou, afirmo, perfeitamente documentado, que o proclamado espírito de perseguição nunca existiu... sob a minha palavra de honra, afirmo” (Depoimentos. Ibidem, fls 50-52-57-72-73).
O caráter de Annibal Theophilo foi sobejamente exposto ao longo destas páginas. São muitos os depoimentos que o identificam perante a história da sociedade brasileira. Não precisamos pôr Annibal num pedestal. Falam por nós os seus contemporâneos em considerável número de respostas à nossa longa pesquisa. (São mais de meia centena de depoimentos)
No seu livro de memórias Gilberto Amado, capítulo Terrível Prova, diz sobre a sua vítima... “de quem eu nunca ouvira falar, cujo nome me era completamente desconhecido... não escrevia em jornais nem trabalhava em redação, não militava propriamente nas letras, não exercia função pública ou particular, emprego...” Estranho. Esqueceu-se de dizer que, na Secretaria do Teatro Municipal, quando da distribuição graciosa de convites à sociedade para os espetáculos e récitas – prática universal – quase sempre entre os primeiros da fila estava Gilberto Amado. O Secretário do Teatro era Annibal Theophilo. Na rua do Rozo e na República das Laranjeiras os literatos se reuniam. Annibal Theophilo, assíduo freqüentador, era íntimo amigo de Coelho Neto e Alcides Maya. A miopia de Gilberto Amado não distinguia o seu confrade. Também na Sociedade Brasileira de Homens de Letras, como fundador e organizador, o poeta continuava a não ser visto. Estranho, muito estranho. Nas livrarias, nos salões, nas confeitarias, nas conferências, nas redações de jornais e revistas, ao longo da Avenida Central, Annibal Theophilo jamais fora visto e reconhecido. No dia em que o poeta foi visto e reconhecido, foi eliminado, assassinado.
Ao chegarmos ao doloroso capítulo da morte de Annibal Theophilo, há de socorrer-nos a serenidade capaz de impedir que a mágoa se transforme em anátema. O objetivo deste livro, porém, se de uma parte é quebrar o silêncio que tem ensombrado a memória do grande poeta, impedindo que se reconheça o lugar de destaque a que tem direito na literatura brasileira, de outra é restaurar a verdade dos fatos sobre o crime, distorcidos de tal modo, que o algoz é apresentado como inocente e a vítima como culpado.
Para o julgamento definitivo da história devem ser ouvidos os numerosos depoimentos que recolhemos em anos de pesquisa, alguns com extrema dificuldade, pois não raro tivemos que vencer comodismos, ressentimentos, compromissos de amizade, ou compreensíveis escrúpulos de reviver as amargas ocorrências. Mas pacientemente compusemos o painel das provas. Julgue o leitor.
O autor do crime, em determinado trecho de suas memórias, refere-se a Annibal Theophilo como pessoa de quem “nunca ouvira falar, cujo nome me era completamente desconhecido”. Afirma que “nunca o vira, não escrevia em jornais nem trabalhava em redações, não militava propriamente nas letras, não exercia função pública ou particular”. A inverdade chega a ser despautério. Annibal bem jovem já participava das “horas literárias”, dos “salões”; freqüentava as livrarias, clubes e confeitarias, ao lado dos famosos poetas e escritores, que tanto marcaram época na nossa boêmia literária; pertencera ao Centro Cearense, em Fortaleza, e à Mina Literária, em Belém; fundara e dirigira O Tugúrio, revista literária, e O Bode, revista humorística, no Rio de Janeiro; no Ceará colaborara em A Pena, Iracema, no Ceará Ilustrado, Almanaque Ilustrado, Almanaque e jornal O Comércio; escreveu em A Mina e Olho da rua, de Belém; pertencera ao corpo de redação da Careta e Fon-Fon; publicara poemas na Revista Brasileira, Revista da Semana; fizera conferência no salão do Jornal do Comércio; em 1912, quando voltou da Europa, foi ocupar posição de relevo na Secretaria do Teatro Municipal, onde trabalhou até o dia da sua morte; foi fundador da Sociedade Brasileira de Homens de Letras, com participação, inclusive, na sua administração; conquistara verdadeiro renome literário com a publicação de A Cegonha, soneto tantas vezes publicado e premiado; granjeou fama como declamador.
Não, não era um escritor anônimo. Muito menos um desconhecido do criminoso, que com ele convivia em rodas literárias de maior prestígio da época, como a que freqüentava a casa de Coelho Neto, onde tiveram lugar os fatos que levaram ao crime.
As Razões Do Crime
O inverídico memorialista, por motivos que a psicologia pode explicar, e que estariam ligados, segundo o jornal A Província de Pernambuco, edição de 21 de junho de 1915, à recusa do General Dantas Barreto de atender ao pedido de Coelho Neto para introduzi-lo na política do Estado, resolvera, a partir de certo momento, alcançar o escritor maranhense e a sua própria família com críticas, irreverências e até desrespeito. (Reproduzindo depoimento de Coelho Neto, em A Noite, de 20/6/1915)
Procedimento tão estranho, partindo de quem vinha sendo recebido no próprio lar do escritor, com a acolhedora fidalguia por todos reconhecida, foi censurado e repelido pelos amigos de Coelho Neto, entre os quais Annibal Theophilo, que, nobre e bravo como sempre, disse frontalmente ao agressor:
– O senhor não é mais digno da minha amizade. Não aceitarei mais o seu cumprimento.
Sobre o episódio o testemunho definitivo é do próprio Coelho Neto, publicado na imprensa (A Época, de 21 de junho de 1915 e A Noite, de 20 de junho de 1915), logo depois da morte de Annibal Theophilo:
De certo tempo para cá, começou a mostrar que, se era em nossa presença todo ele gentileza, quando saía fazia comentários desagradáveis a respeito de cada um de nós. Soubemos do fato e logo resolvemos expulsar de nosso meio o mau elemento. Entre os meus amigos revoltados com isso, o mais indignado era Annibal Theophilo, tipo perfeito de homem íntegro e espírito altivo, que resolveu cortar relações com aquele a quem protegera desde a sua chegada aqui no Rio de Janeiro. (A Noite, de 20/6/1915) Depoimento no Processo. Annibal Theophilo intercedeu junto a João Lage, proprietário de O País, no sentido de incluir Gilberto Amado no corpo de redatores daquele jornal.
Confronte-se a afirmação de Coelho Neto de que Annibal protegera o seu desafeto com a alegação deste que mal o conhecia.
Como justificativa do crime as citadas memórias são pródigas em referências à suposta perseguição que Annibal Theophilo movia ao criminoso, insultando-o, ameaçando-o com castigos físicos. Ora, não era esse o temperamento do poeta. Já traçamos, com apoio em múltiplos episódios, as linhas mestras do seu caráter. Era capaz e arroubos, de gestos heróicos, desprendidos, mas não alimentava ódios. Claro, recusou a amizade do agressor da casa e da honra do seu amigo, mas não tinha por que mover-lhe perseguição contumaz. O escritor Luís Edmundo, ao comentar o crime em entrevista ao jornal A Noite, publicada em 22/6/1915, afirmou taxativamente, com isso desmentindo as declarações do criminoso, no depoimento policial, que Annibal “não perseguia o seu assassino”. Relata ocorrência, verificada dias antes, quando os três se encontraram na Avenida, em que percebeu da parte de Annibal em relação ao terceiro personagem, não ódio ou vingança, mas apenas indiferença. Acrescentou enfaticamente, “insuspeito como sou, afirmo, perfeitamente documentado, que o proclamado espírito de perseguição nunca existiu... Sob a minha palavra de honra, afirmo”. Luís Edmundo. Depoimentos repetidos em outros órgãos da imprensa.
Anos mais tarde, 40 e poucos anos mais tarde, Luis Edmundo no seu livro de memórias procura defender ou justificar a ação criminosa de Gilberto Amado, já então projetado nas letras, na política e na diplomacia. Diz que “sendo míope, tomou o cumprimento como a ele dirigido, retribuindo risonho, erguendo o braço e agitando a mão”. Quanto a Annibal, teria reagido “escandalosamente, de sobrolho franzido, acentuando as palavras que lhe saem da boca num diapasão que a todos, de certo modo, impressiona e aturde...” “Rio de Janeiro do meu tempo...”
Um crime não se justifica por um cumprimento mal compreendido ou pelo tom de voz da vítima. A explicação acoberta conveniência de amizade, senão outras, e lamentavelmente quando fomos procurar Luis Edmundo em sua residência para colher dele, bem já distante das paixões, um depoimento definitivo, não conseguimos alcançar o contorno nítido da sua posição. Não se lembrava dos depoimentos de 1915, diante das provas que lhe mostrávamos. Mas, com nitidez de detalhes, lembrou-se de momentos vários da vida brasileira do início do século: da organização da Sociedade Brasileira de Homens de Letras e seus componentes; das reuniões na rua do Rozo, casa de Coelho Neto; dos desencontros políticos entre republicanos e monarquistas; da sociedade que desfilava ao longo da avenida Central, artéria efervescente com ares europeizados; etc. Só não se lembrava dos depoimentos publicados em 1915. Lembrou-se, ainda, diga-se, da cena em que os literatos reunidos, cumprindo um pacto, derramaram um frasco do perfume Ideal de Houbigant no peito de Annibal Theophilo morto, inclusive ele, Luis Edmundo. Cena essa comentada por toda imprensa; publicada em livros. Só Magalhães Júnior nega e tenta ridicularizar Martins Fontes, chamando-o de mitômano, por repeti-la em livro. De nossa longa conversa, pouco podemos revelar aqui, já que, como pesquisador histórico, faltam-nos os documentos comprobatórios que nos protejam. Mas, houve um momento em que Luís Edmundo reconheceu não ter sido justo com Annibal Theophilo.
Ao autor de “O Rio de Janeiro do meu tempo” restou-nos dizer que revelaríamos em nosso trabalho os depoimentos de 1915 ao lado do que publicara em suas memórias quarenta e poucos anos depois da tragédia.
Luís Edmundo reatara amizade com Gilberto Amado.
Depois de longo depoimento, quando nada perguntávamos, e muito ouvíamos, precisamos perguntar a Luís Edmundo: Por que tanta agressividade com Annibal Theophilo, no seu livro de memórias “Rio de Janeiro do meu tempo?...” As palavras ali expostas não condizem com o seu estilo, nem com o seu temperamento, temos certeza!... Quem escreveu essas páginas, Luís Edmundo?!
Um profundo silêncio invadiu o ambiente...
Luís Edmundo ofereceu-nos, com dedicatória, o seu livro Poesias (19 de novembro de 1961). E completou: Professor, cumpra com a sua missão... Partimos...
Momento Decisivo
Do dramático ao emocional – confessamos – esse episódio deu-nos força bastante para completarmos a organização destas páginas. Deflagrava-se, então, o doloroso processo de reconstrução da imagem do poeta de Angelus, contra erros e injustiças repetidos por escritores famosos.
Enfrentamos um verdadeiro complô subterrâneo que se expunha ardilosamente, arquitetado contra a figura de A.T. Havia, de fato, a deliberada intenção de elimina-lo moral e intelectualmente da vida cultural brasileira – e o tentaram por longo tempo. Mas não se perpetuará, como previa Carlos Drummond de Andrade:
Aquele Crime
Aquele crime ficou ignorado longos anos, e, quando se espalhou a notícia, nem o criminoso vivia mais, e todas as testemunhas que possivelmente estariam em condições de esclarecer alguma coisa tinham morrido. A vítima fora uma pessoa muito amada de todos, mas pensava-se que tivera morte natural. Os papéis encontrados por acaso revelavam entretanto um caso que encheu a todos de estupefação.
Pela primeira vez se positivava a execução de um crime perfeito, mas tão perfeito mesmo, que o autor se decidira a revela-lo, 50 anos após o delito, naqueles papéis que matematicamente levariam meio século a serem encontrados. Como aconteceu.
Chegou-se a conclusão que não havia motivo algum para o crime, senão esse de ser tão bem planejado e consumado que ninguém jamais descobriria o criminoso e muito menos o crime, se ele próprio não o concebesse como obra-prima, destinada ao futuro. No fundo, um vaidoso, crente na posteridade. Jornal do Brasil – Caderno B – Rio, 18 de setembro de 1979.
Assim termina
A história de uma viagem...
Todos viram e ouviram...
Procurem um remédio
E nunca sigam a regra
Que está mal
“A Exceção e a Regra – Bertold Brecht.
A versão do autor do crime, por displicência ou má fé, vem sendo repetida por historiadores e críticos. Fernando Jorge, em Vida e Poesia de Olavo Bilac, insiste na falsa alegação de que Annibal Theophilo procurava insultar e humilhar o seu confrade. Não tivesse o livro outras imperfeições, teria esta a desmerece-lo inteiramente. Afirmação apressada, colhida das razões do autor do crime para inocentar-se, como de fato aconteceu. Se a Fernando Jorge animasse o desejo de fazer história, honrando a pesquisa, teria, por exemplo, recolhido o depoimento do próprio Bilac, o seu biografado, para verificar que nem Annibal vinha perseguindo o seu desafeto, nem aquele dia trágico estava movido por qualquer sentimento de cólera, sequer irritação.
Raymundo Magalhães Júnior, no livro “Olavo Bilac e sua época” (1974), não esconde a sua parcialidade. Apesar de transcrever o depoimento do poeta de Tarde, incorpora as versões desairosas sobre a personalidade de Annibal Theophilo, a quem chama de comensal de Coelho Neto, “turbulento e perseguidor implacável do seu desafeto”. Culmina por atribuir-lhe, no episódio do cumprimento que deflagrou o crime, uma frase ofensiva, que, entretanto, não foi proferida segundo todos os testemunhos válidos. É preciso, para honra da história da literatura, retificar essa versão mentirosa de memorialistas sem compromisso com a pesquisa histórica, comodistas, repetidores da infâmia, coniventes com a farsa.
Levamos a Magalhães Júnior os depoimentos de Luís Edmundo, publicados em órgãos da imprensa de 1915.
Disse-nos: “Colega, sou amigo de Gilberto Amado”... Sem comentários!...
Aprendemos um pouco mais o quanto é fraca a natureza humana.
Jamais negamos que Annibal Theophilo repudiou a amizade de Gilberto Amado depois dos acontecimentos já relatados. Coelho Neto ajudou e protegeu Gilberto Amado quando de sua vinda para o Rio de Janeiro, e teve o apoio de muitos daqueles que freqüentavam a casa da rua do Rozo e da República das Laranjeiras, sob a liderança do positivista Alcides Maya. Acolheram-no como um companheiro leal. Se fatos graves aconteceram, a reação afastou-o daquele convívio. Muitos literatos, solidários com Coelho Neto e Alcides Maya, afastaram-se de Gilberto Amado, dentre eles – Annibal Theophilo que, com franqueza comunicou-lhe não aceitar mais o seu cumprimento. O seu sentimento de desprezo, este, por certo, levaria à revolta com arma de fogo mortal que eliminaria a vida do poeta de “Rimas”.
Annibal Theophilo ocupou posição de destaque na administração da Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Certa feita, Oscar Lopes, seu presidente, indagou de Annibal sobre como ele via a presença de Gilberto Amado na Entidade:
Vejo-o com indiferença, respondeu. (Depoimento fls 52 do Processo)
Olavo Bilac e Annibal Theophilo conversavam na Avenida Central, quando deles se aproximou Gilberto Amado. O poeta afastou-se para o lado convencido que o assunto não lhe interessaria (Depoimento e testemunho de Olavo Bilac – Autos do Processo fls 48-132). Os depoimentos de Jorge Schmidt e de Leal de Souza, da redação da Revista Careta, invalidam qualquer insinuação de que Annibal Theophilo perseguia e humilhava Gilberto Amado. Luís Edmundo, enfaticamente acrescenta “insuspeito como sou, afirmo, perfeitamente documentado, que o proclamado espírito de perseguição nunca existiu... sob a minha palavra de honra, afirmo” (Depoimentos. Ibidem, fls 50-52-57-72-73).
O caráter de Annibal Theophilo foi sobejamente exposto ao longo destas páginas. São muitos os depoimentos que o identificam perante a história da sociedade brasileira. Não precisamos pôr Annibal num pedestal. Falam por nós os seus contemporâneos em considerável número de respostas à nossa longa pesquisa. (São mais de meia centena de depoimentos)
No seu livro de memórias Gilberto Amado, capítulo Terrível Prova, diz sobre a sua vítima... “de quem eu nunca ouvira falar, cujo nome me era completamente desconhecido... não escrevia em jornais nem trabalhava em redação, não militava propriamente nas letras, não exercia função pública ou particular, emprego...” Estranho. Esqueceu-se de dizer que, na Secretaria do Teatro Municipal, quando da distribuição graciosa de convites à sociedade para os espetáculos e récitas – prática universal – quase sempre entre os primeiros da fila estava Gilberto Amado. O Secretário do Teatro era Annibal Theophilo. Na rua do Rozo e na República das Laranjeiras os literatos se reuniam. Annibal Theophilo, assíduo freqüentador, era íntimo amigo de Coelho Neto e Alcides Maya. A miopia de Gilberto Amado não distinguia o seu confrade. Também na Sociedade Brasileira de Homens de Letras, como fundador e organizador, o poeta continuava a não ser visto. Estranho, muito estranho. Nas livrarias, nos salões, nas confeitarias, nas conferências, nas redações de jornais e revistas, ao longo da Avenida Central, Annibal Theophilo jamais fora visto e reconhecido. No dia em que o poeta foi visto e reconhecido, foi eliminado, assassinado.
“Ali havia metáforas tão monstruosas e de cores tão sutis que pareciam orquídeas. A vida dos sentidos era descrita em termos de filosofia mística, às vezes ficava difícil saber se tratava-se dos êxtases espirituais de um santo medieval ou das confissões mórbidas de um pecador moderno. Era um livro venenoso.” (Oscar Wide)
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O Comportamento Da Justiça
O processo remetido à Promotoria dizia ter o acusado infringido o dispositivo do art. 294, § 1, do Código Penal; “ex-vi” da circunstância agravante do § 7, do art. 39, do mesmo Código, concorrendo ainda as agravantes dos § 4 e 5 desse último.
A Corte marcara a data do julgamento para um ano e dias depois do crime – 30/6/1916. Em 24 de junho de 1916, O Imparcial comentava em suas páginas: “Vai o Tribunal do Júri julgar um dos crimes que mais têm emocionado a nossa sociedade, em face do modo pelo qual foi perpetrado ou cometido, em face do local e da ocasião onde se achavam reunidas pessoas de nossa mais alta sociedade, assistindo a uma festa literária, em face ainda do dano material causado, em face principalmente da qualidade e condição social do acusado, deputado federal pelo Estado de Sergipe...” O Correio da Manhã preocupava-se nestes termos: “A fim de que a sociedade por seus legítimos representantes se desagrave, restaurando a ordem tão violentamente abalada”, pedindo justiça... Entendia ainda A Época que “os crimes devem ser punidos com a mesma severidade, sejam eles cometidos pelo homem do povo ou pelo mais elevado expoente dessa ou daquela classe social”; e mais adiante: “...Cumprir a Lei e obedecer os ditames da consciência devem ser as duas últimas preocupações dos que julgam”. (24/6/1916)
Debates
Durante 24 horas reinou expectativa no superlotado salão da Justiça, presidido pelo Juiz Costa Ribeiro. Os debates foram emocionantes, pois deles participaram eminentes figuras da advocacia e do direito como Evaristo de Morais, Cirilo Júnior, Pinto Lima, Aníbal Freire, Manoel Vilaboim, sem esquecer o nome ilustre de Galdino de Sequeira, que atuou como Promotor.
Galdino de Sequeira iniciara o seu trabalho, preocupado com que se fizesse justiça, nos seguintes termos: “Acredito que serão salvaguardados os sagrados interesses da Justiça”. E mais adiante: “É necessário que fique acentuado que qualquer pessoa responda igualmente perante a Justiça de modo a não fazer supor que ela só seja forte, severa, exigente, para os pequenos, e complacente, frouxa e improfícua para os grandes...” Referindo-se ao réu, dizia estar “a sociedade surpreendida pelo procedimento do acusado, um membro do nosso Congresso Nacional, possuidor de um título conferido por uma academia da qual é professor, e homem de cultivo intelectual demonstrado em obras e escritos publicados, que estava mais adstrito ao dever de respeitar a vida e a integridade corpórea de seu semelhante”. (Folhas do Processo)
Segundo o Jornal do Brasil, “a acusação dedicou-se à apuração do livre arbítrio do crime, tentando provar a responsabilidade. Tenta eliminar a possibilidade da “privação dos sentidos”, ainda que momentaneamente; tenta desfazer a idéia de ter o réu agido sob a impressão de uma paixão qualquer – e se assim fosse, atenuaria a pena nas condições estabelecidas pelo Código do Processo Criminal, art. 42.” (30/6/1916)
O promotor na sua explanação final apontava a necessidade de se fazer justiça “aplicando ao acusado a pena pedida que está em completa relação com os instintos do réu e de acordo com o crime cometido”.
Mais adiante, assomaria à tribuna o brilhante advogado Cirilo Júnior, que viera de São Paulo para auxiliar na acusação. Dizia ser o réu “indefensável porque o seu delito repugna a qualquer figura jurídica que o justifique; e a própria psicologia das paixões que inocenta os criminosos sociais, e essa acusação fa-la-á o orador com as peças imprestáveis que a defesa entendeu de opor à consistência da acusação”.
Aprofundando-se nas declarações que o acusado prestara logo depois do crime, encontrara provas que “por si eram bastante para excluir a procedência de quanto disse o acusado contra a sua vítima, como se não bastasse a falta de provas que devera ter dado o acusado para confirmar as restrições por si expostas na ponderação dos motivos determinantes do crime”. (Folhas do Processo)
O Jornal do Comércio reproduzia o pensamento do acusador, nas suas linhas: “O réu insistia em dizer que a vítima procurou por várias vezes agredi-lo, e, no entanto, tais agressões nunca se deram, apesar de se referir o acusado que estava sempre só nos seus encontros com a vítima. Demais, o acusado nada trouxe em abono do que diz e no entanto conta que as perseguições da vítima foram testemunhadas. Por que então estas testemunhas não foram trazidas a juízo?...” Referia-se às circunstâncias fantasiadas pelo réu, “com o só escopo de tecer uma atmosfera contrária à atitude de sua vítima e a si favorável...” Acrescentava, ainda, que tudo que fora dito pelo acusado, por ele mesmo fora desmentido com fatos novos, por uma outra maneira, “tal como o fez na sua entrevista com a Gazeta de Notícias de onteontem” (o réu fora entrevistado pelo repórter daquela folha nas vésperas do julgamento). (30/6/1916)
Fizera uso da palavra, na defesa do réu, Aníbal Freire, que em nome da Faculdade do Recife, vinha “sincera, nobre e firmemente interessar-se pela sorte de um de seus filhos diletos”. Durante mais de duas horas o ilustre advogado exaltou a figura do réu, “chegando às vezes a comover a platéia”, (A Noite), tal a eloqüência contida em suas frases.
Manoel Vilaboim, advogado e deputado, por sua vez, afirmava em determinado trecho de sua oração que “os homens mais honestos podem, de um momento para outro, cometer crimes. Que atire a primeira pedra aquele que estiver isento de tal situação...” A defesa, citando Charles Pierre, no seu livro Patologia das Emoções, via a identificação, em certos casos, entre o patológico e psicológico, bastando tratar-se de um emotivo”.
– ... É um crime passional em que o réu, temperamento emotivo, feriu a vítima.
Como Se Explica A Emoção
As peças positivas da autópsia e do exame da arma convenciam ter o acusado atingido a sua vítima estando de costas. Por outro lado, procurava a acusação destruir as refutações da defesa. Os muitos “incidentes havidos antes do crime”, por exemplo, foram todos desmentidos por testemunhas do valor de Coelho Neto e Olavo Bilac.
A acusação dizia: “Mentindo, não pode pretender ser um criminoso passional. Dessas mentiras, resulta também que o delinqüente praticou o seu delito em estado de absoluta calma, e até argumentos teve para discutir suas imunidades parlamentares a fim de não ser preso”.
Mais incisivo, o Dr. Cirilo Júnior tentava desfazer por todos os meios a possibilidade da privação dos sentidos: “Srs. Jurados, é o criminoso passional que faz no seu depoimento lógico e seguro, cheio de emoção e arte, rememorando o fato, em traço rendilhado, de largos argumentos de fantasia, desde o seu início até a sua prisão. Que logo após o crime, o réu vai à delegacia, calmo, sereno, infama a sua vítima, faz literatura; que depois do crime, invoca as suas imunidades parlamentares para não ser preso... Como dizer que ele agiu com privação dos sentidos?...” (Folhas do Processo)
Outro Caminho
A presença de Evaristo de Morais aumentaria o clima de expectativa. Fez-se silêncio no auditório quando o criminalista começou a sua defesa: “...E quereis maior prova de democracia do que a de se achar aqui, sentado no banco dos réus, um deputado federal, um lente de direito, um literato?...”
Pretendendo destruir os argumentos de Cirilo Júnior, que se preocupara com o fato de ser “impossível em epilético se recordar do crime”, cita os ensinamentos da grande escola francesa que contestam a tese e conclui: “Ora, se o epilético se lembra das passagens do crime, com mais razão o emotivo, o passional, se deve lembrar. Muitas vezes quando pratica um ato violento, só com a vista do sangue, o choque moral exerce nos nervos o efeito de uma ducha de água fria, que desperta todos os sentidos...” para completar: “Obcecado pela perpetração do crime, a vista do sangue despertou-o dessa letargia e rememorou todos os fatos anteriores ao crime, logo em seguida à pratica”. (Folhas do Processo)
Insistindo em acentuar o valor da paixão violenta, declarava que “nem o amor e o instinto da própria conservação é maior do que a paixão violenta que se apodera do indivíduo subitamente”...e mais: “a alma dos criminosos passionais é feita de tempestades psicológicas que a impelem”. Patético, exclama: “Onde vai a vontade do passional naufragado na tempestade das paixões?... um homem normal, não louco, um homem aparentemente equilibrado que não sofre de perturbações patológicas pode perfeitamente ser vítima de uma emoção ou de uma paixão, que se pode confundir com a de um temperamento doentio”. Finalmente, valendo-se de Ferri e Bonono, achava que “a pena a aplicar para os passionais não é a da penitenciária, não é a do cárcere, porque este é contrário ao fim a que se lhe aplica”... Pugnando pela absolvição, a defesa alegava que o réu se achava em estado de “completa privação de sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime” e pedia que o tribunal consignasse o quesito da perturbação dos sentidos e da inteligência. (Folhas do Processo)
Volta A Acusação
Retornava a acusação, na palavra de Pinto Lima: “...o banco dos réus está hoje ocupado por representante do Direito, do povo e das letras, com um grau de responsabilidade muito maior. O veredictum do Tribunal deve ser, porém, igual ao que é proferido contra qualquer deserdado da sorte”... Depois de ter traçado o perfil psicológico e moral do criminoso passou a contestar a defesa que enfatizara nas desavenças literárias: “À inveja da coterie da nossa literatura se devia, como sustentou a defesa, a trama de intrigas e despeitos, que criaram uma situação de tal gravidade para o indiciado que, mais poderosa que a sua vontade, o conduziu até o banco dos réus”. Ponderava, então, Pinto Lima que “outros espíritos brilhantes, celebrações poderosas, talentos respeitados há entre nós que não sofreram nunca tal inveja, nem se viram jamais em tais tramas”.
Ao longo dos debates o advogado Pinto Lima afirma, apoiado em jornais, que exibe, “nem tão imaculado é o talento de quem tem sido acusado de plágio repetidas vezes, sem oferecer, quanto a isso, uma contestação digna de fé”. Referindo-se ao temperamento do Dr. Gilberto Amado, diz que ele já foi também acusado de manejar melhor a tampa do açucareiro do que a pena. E isso porque, no 7º Distrito Policial, está registrada uma queixa, que lê, de que o Dr. Gilberto Amado, em momento de ira, atirou uma tampa de açucareiro na cabeça de um criado, produzindo-lhe um ferimento contuso. (Jornal do Comércio, 30 de junho de 1916)
“... Lembra no Tribunal que o acusado não é nenhum neófito na arte de atirar. Em Pernambuco – é certo que há dez anos – muito exercitou esse esporte, o que foi afirmado pela palavra insuspeita do professor Dr. Anibal Freire.” (Jornal do Comércio, 30 de junho de 1916)
Frase Histórica
Parecendo antever o resultado do julgamento, de volta à Tribuna, Cirilo Júnior, em voz comovida, no auge da eloqüência, produz a célebre invectiva, tão conhecida nos meios forenses e difundida por todos os órgãos de nossa imprensa:
“– Vai, mata, sê rico; os homens amanhã te aplaudirão; tu serás querido, adulado, feliz; tuas virtudes serão proclamadas; realizarás grandes obras. A tua vontade é mais forte, deve superar as resistências e os escrúpulos banais... Vai, mata, sê absolvido... Mas, antes de ir, assassina também as tradições de honra deste Tribunal.” (Folhas do Processo)
Cabe-nos aqui reafirmar o nosso propósito de apenas relatar os fatos históricos com alentada documentação. Não há, de nossa parte, nenhum menosprezo ao resultado do julgamento. Para nós a Justiça é soberana.
“... Observo que o Notificado não fez nenhuma crítica à decisão do Tribunal que julgou o homicídio, o qual, sem dúvida, se colocou nos limites da Lei, reconhecendo a “privação dos sentidos”.” 19ª Vara Criminal – Juiz Dr. Dalton Jesus Castro de Oliveira Costa. (25 out. 1979)
A Absolvição
O corpo de jurados, constituído por Pedro de Cerqueira Alambary Luz, Oscar Alves, Francisco José da Costa Barros, Luís Felipe de Souza Leal, Manuel Alves da Cruz Rios, João Gonçalves Lopes, Artur Guimarães de Araújo Jorge, absolveu o réu, com as respostas que deu aos seguintes quesitos:
1º quesito – O réu, em 19/6/1915, às 18:30 hs, mais ou menos, no saguão do Jornal do Comércio, na Avenida Rio Branco, feriu com arma de fogo o poeta Annibal Theophilo, produzindo-lhe lesões constatadas no auto da autópsia, de fls. 65?
- Sim, por 7 votos.
2º quesito – Estas lesões foram, pela sua natureza, a sede, a causa eficiente da morte do ofendido?
- Sim, por 7 votos.
Os 3º, 4º e 5º quesitos ficaram prejudicados de acordo com as respostas dadas nos dois primeiros.
6º quesito – O réu cometeu o crime com surpresa?
- Não, por 7 votos.
7º quesito – O réu tinha superioridade em armas, de modo que o ofendido não se podia defender com probabilidade de repelir a ofensa?
- Sim, por 7 votos.
8º quesito – Existem circunstâncias atenuantes em favor do réu?
- Sim, por 7 votos.
Quesito a requerimento da defesa – O réu se achava em estado de completa privação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime?
- Sim, por 4 votos. (Folhas do Processo)
A Lei Penal sofreu alterações na Reforma do Código de 1940.
Surpresa
Um ano depois da morte de Annibal Theophilo, com a absolvição do acusado, a imprensa da capital manifestava em termos candentes a surpresa do país. O Imparcial, de 30/6/1916: “Esse veredictum embora por assim dizer esperado, produziu no espírito público uma penosa impressão. Apregoava-se a regeneração do júri carioca. As estatísticas proclamavam os resultados dos julgamentos. A lista das absolvições diminuía de modo impressionador...” E, mais adiante, prosseguia: “Pouco se lhe deu que essa absolvição fosse escandalosa e contrariasse o senso jurídico do nosso povo, que se vê nessa sentença com a sua filosofia precisa e verdadeira dos fatos, uma conseqüência lógica da desigualdade social...” Das páginas do Correio da Manhã, na mesma data: “Foi assim restituído ao convívio social, por um voto de desempate, o delinqüente, que confessou sistematicamente fora por vezes enxovalhado em público e que ao matar o seu enxovalhador o fizera com surpresa da vítima, pois atirara de modo que esta o não podia ver e sem que neste ato entrasse, de qualquer modo, a sua inteligência ou os seus sentidos. A sociedade, justamente alarmada com a desintegração operada com a prática do crime, deve receber em seu seio esta célula tão originalmente dotada de condições para vencer, com o aplauso de quantos se acostumaram a considerar bons os meios, sempre que aptos à conservação dos fins”. A Tribuna: “O júri poderá absolve-lo mas ele carregará consigo a sua eterna condenação, porque os homens de bem, esses que inquestionavelmente formam a estrutura das sociedades, sejam quais forem, esses nunca o absolverão”. (30/6/1916)
Recorreu-se ao Tribunal Togado. Mas a sentença seria confirmada, não sem a advertência e a condenação da imprensa e da opinião pública. É de O Correio da Manhã a seguinte e desalentada ironia: “E o assassino do fino esteta de A Cegonha terá então de sofrer a pena, já ontem cominada, de controlar de novo, diante de seus pares, a abnegação evangélica do enxovalhado, redimido por um gesto traiçoeiro, que armou o seu braço, alheado de sua vontade, divorciado dos seus sentidos”. (30/6/1916)
Por notória pressão política, exercida desde a fase policial do processo, e por defeito da legislação penal vigente (Código Penal de 1890), que admitia no crime de morte a dirimente da completa privação dos sentidos, imperfeição mais tarde corrigida no Código de 1940, que aboliu a regra, porta falsa por onde escaparam à justiça numerosos delinqüentes, sob o patrocínio de advogados hábeis, consumou-se a absolvição do assassino de Annibal Theophilo.
A corte dos seus admiradores poderosos, para não melindra-lo, cobriu com o esquecimento a memória e a obra do poeta.
O processo remetido à Promotoria dizia ter o acusado infringido o dispositivo do art. 294, § 1, do Código Penal; “ex-vi” da circunstância agravante do § 7, do art. 39, do mesmo Código, concorrendo ainda as agravantes dos § 4 e 5 desse último.
A Corte marcara a data do julgamento para um ano e dias depois do crime – 30/6/1916. Em 24 de junho de 1916, O Imparcial comentava em suas páginas: “Vai o Tribunal do Júri julgar um dos crimes que mais têm emocionado a nossa sociedade, em face do modo pelo qual foi perpetrado ou cometido, em face do local e da ocasião onde se achavam reunidas pessoas de nossa mais alta sociedade, assistindo a uma festa literária, em face ainda do dano material causado, em face principalmente da qualidade e condição social do acusado, deputado federal pelo Estado de Sergipe...” O Correio da Manhã preocupava-se nestes termos: “A fim de que a sociedade por seus legítimos representantes se desagrave, restaurando a ordem tão violentamente abalada”, pedindo justiça... Entendia ainda A Época que “os crimes devem ser punidos com a mesma severidade, sejam eles cometidos pelo homem do povo ou pelo mais elevado expoente dessa ou daquela classe social”; e mais adiante: “...Cumprir a Lei e obedecer os ditames da consciência devem ser as duas últimas preocupações dos que julgam”. (24/6/1916)
Debates
Durante 24 horas reinou expectativa no superlotado salão da Justiça, presidido pelo Juiz Costa Ribeiro. Os debates foram emocionantes, pois deles participaram eminentes figuras da advocacia e do direito como Evaristo de Morais, Cirilo Júnior, Pinto Lima, Aníbal Freire, Manoel Vilaboim, sem esquecer o nome ilustre de Galdino de Sequeira, que atuou como Promotor.
Galdino de Sequeira iniciara o seu trabalho, preocupado com que se fizesse justiça, nos seguintes termos: “Acredito que serão salvaguardados os sagrados interesses da Justiça”. E mais adiante: “É necessário que fique acentuado que qualquer pessoa responda igualmente perante a Justiça de modo a não fazer supor que ela só seja forte, severa, exigente, para os pequenos, e complacente, frouxa e improfícua para os grandes...” Referindo-se ao réu, dizia estar “a sociedade surpreendida pelo procedimento do acusado, um membro do nosso Congresso Nacional, possuidor de um título conferido por uma academia da qual é professor, e homem de cultivo intelectual demonstrado em obras e escritos publicados, que estava mais adstrito ao dever de respeitar a vida e a integridade corpórea de seu semelhante”. (Folhas do Processo)
Segundo o Jornal do Brasil, “a acusação dedicou-se à apuração do livre arbítrio do crime, tentando provar a responsabilidade. Tenta eliminar a possibilidade da “privação dos sentidos”, ainda que momentaneamente; tenta desfazer a idéia de ter o réu agido sob a impressão de uma paixão qualquer – e se assim fosse, atenuaria a pena nas condições estabelecidas pelo Código do Processo Criminal, art. 42.” (30/6/1916)
O promotor na sua explanação final apontava a necessidade de se fazer justiça “aplicando ao acusado a pena pedida que está em completa relação com os instintos do réu e de acordo com o crime cometido”.
Mais adiante, assomaria à tribuna o brilhante advogado Cirilo Júnior, que viera de São Paulo para auxiliar na acusação. Dizia ser o réu “indefensável porque o seu delito repugna a qualquer figura jurídica que o justifique; e a própria psicologia das paixões que inocenta os criminosos sociais, e essa acusação fa-la-á o orador com as peças imprestáveis que a defesa entendeu de opor à consistência da acusação”.
Aprofundando-se nas declarações que o acusado prestara logo depois do crime, encontrara provas que “por si eram bastante para excluir a procedência de quanto disse o acusado contra a sua vítima, como se não bastasse a falta de provas que devera ter dado o acusado para confirmar as restrições por si expostas na ponderação dos motivos determinantes do crime”. (Folhas do Processo)
O Jornal do Comércio reproduzia o pensamento do acusador, nas suas linhas: “O réu insistia em dizer que a vítima procurou por várias vezes agredi-lo, e, no entanto, tais agressões nunca se deram, apesar de se referir o acusado que estava sempre só nos seus encontros com a vítima. Demais, o acusado nada trouxe em abono do que diz e no entanto conta que as perseguições da vítima foram testemunhadas. Por que então estas testemunhas não foram trazidas a juízo?...” Referia-se às circunstâncias fantasiadas pelo réu, “com o só escopo de tecer uma atmosfera contrária à atitude de sua vítima e a si favorável...” Acrescentava, ainda, que tudo que fora dito pelo acusado, por ele mesmo fora desmentido com fatos novos, por uma outra maneira, “tal como o fez na sua entrevista com a Gazeta de Notícias de onteontem” (o réu fora entrevistado pelo repórter daquela folha nas vésperas do julgamento). (30/6/1916)
Fizera uso da palavra, na defesa do réu, Aníbal Freire, que em nome da Faculdade do Recife, vinha “sincera, nobre e firmemente interessar-se pela sorte de um de seus filhos diletos”. Durante mais de duas horas o ilustre advogado exaltou a figura do réu, “chegando às vezes a comover a platéia”, (A Noite), tal a eloqüência contida em suas frases.
Manoel Vilaboim, advogado e deputado, por sua vez, afirmava em determinado trecho de sua oração que “os homens mais honestos podem, de um momento para outro, cometer crimes. Que atire a primeira pedra aquele que estiver isento de tal situação...” A defesa, citando Charles Pierre, no seu livro Patologia das Emoções, via a identificação, em certos casos, entre o patológico e psicológico, bastando tratar-se de um emotivo”.
– ... É um crime passional em que o réu, temperamento emotivo, feriu a vítima.
Como Se Explica A Emoção
As peças positivas da autópsia e do exame da arma convenciam ter o acusado atingido a sua vítima estando de costas. Por outro lado, procurava a acusação destruir as refutações da defesa. Os muitos “incidentes havidos antes do crime”, por exemplo, foram todos desmentidos por testemunhas do valor de Coelho Neto e Olavo Bilac.
A acusação dizia: “Mentindo, não pode pretender ser um criminoso passional. Dessas mentiras, resulta também que o delinqüente praticou o seu delito em estado de absoluta calma, e até argumentos teve para discutir suas imunidades parlamentares a fim de não ser preso”.
Mais incisivo, o Dr. Cirilo Júnior tentava desfazer por todos os meios a possibilidade da privação dos sentidos: “Srs. Jurados, é o criminoso passional que faz no seu depoimento lógico e seguro, cheio de emoção e arte, rememorando o fato, em traço rendilhado, de largos argumentos de fantasia, desde o seu início até a sua prisão. Que logo após o crime, o réu vai à delegacia, calmo, sereno, infama a sua vítima, faz literatura; que depois do crime, invoca as suas imunidades parlamentares para não ser preso... Como dizer que ele agiu com privação dos sentidos?...” (Folhas do Processo)
Outro Caminho
A presença de Evaristo de Morais aumentaria o clima de expectativa. Fez-se silêncio no auditório quando o criminalista começou a sua defesa: “...E quereis maior prova de democracia do que a de se achar aqui, sentado no banco dos réus, um deputado federal, um lente de direito, um literato?...”
Pretendendo destruir os argumentos de Cirilo Júnior, que se preocupara com o fato de ser “impossível em epilético se recordar do crime”, cita os ensinamentos da grande escola francesa que contestam a tese e conclui: “Ora, se o epilético se lembra das passagens do crime, com mais razão o emotivo, o passional, se deve lembrar. Muitas vezes quando pratica um ato violento, só com a vista do sangue, o choque moral exerce nos nervos o efeito de uma ducha de água fria, que desperta todos os sentidos...” para completar: “Obcecado pela perpetração do crime, a vista do sangue despertou-o dessa letargia e rememorou todos os fatos anteriores ao crime, logo em seguida à pratica”. (Folhas do Processo)
Insistindo em acentuar o valor da paixão violenta, declarava que “nem o amor e o instinto da própria conservação é maior do que a paixão violenta que se apodera do indivíduo subitamente”...e mais: “a alma dos criminosos passionais é feita de tempestades psicológicas que a impelem”. Patético, exclama: “Onde vai a vontade do passional naufragado na tempestade das paixões?... um homem normal, não louco, um homem aparentemente equilibrado que não sofre de perturbações patológicas pode perfeitamente ser vítima de uma emoção ou de uma paixão, que se pode confundir com a de um temperamento doentio”. Finalmente, valendo-se de Ferri e Bonono, achava que “a pena a aplicar para os passionais não é a da penitenciária, não é a do cárcere, porque este é contrário ao fim a que se lhe aplica”... Pugnando pela absolvição, a defesa alegava que o réu se achava em estado de “completa privação de sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime” e pedia que o tribunal consignasse o quesito da perturbação dos sentidos e da inteligência. (Folhas do Processo)
Volta A Acusação
Retornava a acusação, na palavra de Pinto Lima: “...o banco dos réus está hoje ocupado por representante do Direito, do povo e das letras, com um grau de responsabilidade muito maior. O veredictum do Tribunal deve ser, porém, igual ao que é proferido contra qualquer deserdado da sorte”... Depois de ter traçado o perfil psicológico e moral do criminoso passou a contestar a defesa que enfatizara nas desavenças literárias: “À inveja da coterie da nossa literatura se devia, como sustentou a defesa, a trama de intrigas e despeitos, que criaram uma situação de tal gravidade para o indiciado que, mais poderosa que a sua vontade, o conduziu até o banco dos réus”. Ponderava, então, Pinto Lima que “outros espíritos brilhantes, celebrações poderosas, talentos respeitados há entre nós que não sofreram nunca tal inveja, nem se viram jamais em tais tramas”.
Ao longo dos debates o advogado Pinto Lima afirma, apoiado em jornais, que exibe, “nem tão imaculado é o talento de quem tem sido acusado de plágio repetidas vezes, sem oferecer, quanto a isso, uma contestação digna de fé”. Referindo-se ao temperamento do Dr. Gilberto Amado, diz que ele já foi também acusado de manejar melhor a tampa do açucareiro do que a pena. E isso porque, no 7º Distrito Policial, está registrada uma queixa, que lê, de que o Dr. Gilberto Amado, em momento de ira, atirou uma tampa de açucareiro na cabeça de um criado, produzindo-lhe um ferimento contuso. (Jornal do Comércio, 30 de junho de 1916)
“... Lembra no Tribunal que o acusado não é nenhum neófito na arte de atirar. Em Pernambuco – é certo que há dez anos – muito exercitou esse esporte, o que foi afirmado pela palavra insuspeita do professor Dr. Anibal Freire.” (Jornal do Comércio, 30 de junho de 1916)
Frase Histórica
Parecendo antever o resultado do julgamento, de volta à Tribuna, Cirilo Júnior, em voz comovida, no auge da eloqüência, produz a célebre invectiva, tão conhecida nos meios forenses e difundida por todos os órgãos de nossa imprensa:
“– Vai, mata, sê rico; os homens amanhã te aplaudirão; tu serás querido, adulado, feliz; tuas virtudes serão proclamadas; realizarás grandes obras. A tua vontade é mais forte, deve superar as resistências e os escrúpulos banais... Vai, mata, sê absolvido... Mas, antes de ir, assassina também as tradições de honra deste Tribunal.” (Folhas do Processo)
Cabe-nos aqui reafirmar o nosso propósito de apenas relatar os fatos históricos com alentada documentação. Não há, de nossa parte, nenhum menosprezo ao resultado do julgamento. Para nós a Justiça é soberana.
“... Observo que o Notificado não fez nenhuma crítica à decisão do Tribunal que julgou o homicídio, o qual, sem dúvida, se colocou nos limites da Lei, reconhecendo a “privação dos sentidos”.” 19ª Vara Criminal – Juiz Dr. Dalton Jesus Castro de Oliveira Costa. (25 out. 1979)
A Absolvição
O corpo de jurados, constituído por Pedro de Cerqueira Alambary Luz, Oscar Alves, Francisco José da Costa Barros, Luís Felipe de Souza Leal, Manuel Alves da Cruz Rios, João Gonçalves Lopes, Artur Guimarães de Araújo Jorge, absolveu o réu, com as respostas que deu aos seguintes quesitos:
1º quesito – O réu, em 19/6/1915, às 18:30 hs, mais ou menos, no saguão do Jornal do Comércio, na Avenida Rio Branco, feriu com arma de fogo o poeta Annibal Theophilo, produzindo-lhe lesões constatadas no auto da autópsia, de fls. 65?
- Sim, por 7 votos.
2º quesito – Estas lesões foram, pela sua natureza, a sede, a causa eficiente da morte do ofendido?
- Sim, por 7 votos.
Os 3º, 4º e 5º quesitos ficaram prejudicados de acordo com as respostas dadas nos dois primeiros.
6º quesito – O réu cometeu o crime com surpresa?
- Não, por 7 votos.
7º quesito – O réu tinha superioridade em armas, de modo que o ofendido não se podia defender com probabilidade de repelir a ofensa?
- Sim, por 7 votos.
8º quesito – Existem circunstâncias atenuantes em favor do réu?
- Sim, por 7 votos.
Quesito a requerimento da defesa – O réu se achava em estado de completa privação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime?
- Sim, por 4 votos. (Folhas do Processo)
A Lei Penal sofreu alterações na Reforma do Código de 1940.
Surpresa
Um ano depois da morte de Annibal Theophilo, com a absolvição do acusado, a imprensa da capital manifestava em termos candentes a surpresa do país. O Imparcial, de 30/6/1916: “Esse veredictum embora por assim dizer esperado, produziu no espírito público uma penosa impressão. Apregoava-se a regeneração do júri carioca. As estatísticas proclamavam os resultados dos julgamentos. A lista das absolvições diminuía de modo impressionador...” E, mais adiante, prosseguia: “Pouco se lhe deu que essa absolvição fosse escandalosa e contrariasse o senso jurídico do nosso povo, que se vê nessa sentença com a sua filosofia precisa e verdadeira dos fatos, uma conseqüência lógica da desigualdade social...” Das páginas do Correio da Manhã, na mesma data: “Foi assim restituído ao convívio social, por um voto de desempate, o delinqüente, que confessou sistematicamente fora por vezes enxovalhado em público e que ao matar o seu enxovalhador o fizera com surpresa da vítima, pois atirara de modo que esta o não podia ver e sem que neste ato entrasse, de qualquer modo, a sua inteligência ou os seus sentidos. A sociedade, justamente alarmada com a desintegração operada com a prática do crime, deve receber em seu seio esta célula tão originalmente dotada de condições para vencer, com o aplauso de quantos se acostumaram a considerar bons os meios, sempre que aptos à conservação dos fins”. A Tribuna: “O júri poderá absolve-lo mas ele carregará consigo a sua eterna condenação, porque os homens de bem, esses que inquestionavelmente formam a estrutura das sociedades, sejam quais forem, esses nunca o absolverão”. (30/6/1916)
Recorreu-se ao Tribunal Togado. Mas a sentença seria confirmada, não sem a advertência e a condenação da imprensa e da opinião pública. É de O Correio da Manhã a seguinte e desalentada ironia: “E o assassino do fino esteta de A Cegonha terá então de sofrer a pena, já ontem cominada, de controlar de novo, diante de seus pares, a abnegação evangélica do enxovalhado, redimido por um gesto traiçoeiro, que armou o seu braço, alheado de sua vontade, divorciado dos seus sentidos”. (30/6/1916)
Por notória pressão política, exercida desde a fase policial do processo, e por defeito da legislação penal vigente (Código Penal de 1890), que admitia no crime de morte a dirimente da completa privação dos sentidos, imperfeição mais tarde corrigida no Código de 1940, que aboliu a regra, porta falsa por onde escaparam à justiça numerosos delinqüentes, sob o patrocínio de advogados hábeis, consumou-se a absolvição do assassino de Annibal Theophilo.
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