Um Poeta Para A Filha
Annibal Theophilo era todo sorrisos desde o nascimento de sua Elisinha. Ele, tão grande, ao segura-la nos braços, desajeitado, fazia-o com muito cuidado, com medo de machucar-lhe o frágil corpinho. Certo dia, dirigindo-se a um grupo de amigos que o visitavam na rua General Gurjão, na Ponta do Caju, para onde se transferira, tendo que sair da Ilha de Bom Jesus, depois da morte de seu pai, disse: – Vejam, que amor... Que linda é minha filha... Onde vou arranjar um Olavo Bilac para casar com essa pequena? Sempre poeta, julgava que só um poeta poderia merecer sua filha. Grandes recordações tinha o poeta da Ilha de Bom Jesus. De 1898 a 1903, tempo em que lá viveu, pôde realizar muito dos seus sonhos. Seu “pedacinho de carne cor-de-rosa” e o poema que tanta fama e glória lhe trouxe, eram razões que justificavam a sua felicidade. A Cegonha foi dos poemas mais declamados pelos poetas da época. Toda a imprensa o publicou, com belas ilustrações. A Cegonha
É do Professor Astério de Campos a crítica do soneto A Cegonha e da obra de Annibal Theophilo que a seguir se transcreve. Astério de Campos é autor de obras conhecidas e consagradas, como A Literatura Como Fenômeno Estético, Vários Escritos, A Epopéia do Rio de Janeiro, Angústia Florida, Sedução do Mar e Escritores de Minha Geração. No texto, o escritor, contemporâneo de Annibal Theophilo, ajuda-nos a compreender todo o significado da sua obra. Menos lendária e menos decantada que o Cisne, ave pernalta de arribação, a Cegonha, ainda que de variadas espécies, no Brasil e no estrangeiro – cananã, baguari, maguari, marabuto ou marabu, curricaca, nandapoa, íbis, antigamente celebrada num fervoroso e generalizado culto egipciano – suscitou, por afinidade poética, mesmo em O Canto do Cisne, de João Penha, uma lisonjeira e funesta humanização num sonetilho de redondilha maior. O apolíneo escritor gaúcho Annibal Theophilo, personalidade cavalheiresca e rutilante, um quase herói mitológico assaz querido, e muito admirado no grupo de nossos mais célebres parnasianos, espírito fecundo, superior e delicado, tornou-se mais conhecido na literatura indígena como o sonetista de A Cegonha: É, deveras, uma obra-prima no gênero.
Mais artista, mais perfeito e mais sonhador que o vate fluminense, o poeta dos pampas soube, melhor que um zoologista, penetrar a vida interior, desvendar o mundo da Cegonha, bem distinto do mundo em que vivemos. Que diferente perspectiva a da secreta existência dessa ave pernalta, meio obscura, cismadora e enigmática! Evidentemente não possui a Cegonha o porte majestoso do Cisne, que servira de antonomásia aos poetas como Virgílio, Leopardi e Cruz e Souza... Contudo, no escrínio do soneto de Annibal Theophilo A Cegonha ficou mais bela e mais atraente que os Cisnes de Júlio Salusse... A Cegonha, que tão nitidamente se reflete nesse espelho mágico, tem o dom, sem o uso da palavra, de se comunicar a nossa sensibilidade e a nosso entendimento, na expressão natural da Dúvida e na “angústia infinita de si mesma...” na angústia, que tanto aflige o coração humano, e na incerteza, na hesitação, na dúvida, que para Bacon é a escola da Verdade, e que para Camilo é uma tortura, a dúvida que enche todo o Universo! Não se deve apreciar, na obra de Annibal Theophilo, em que a qualidade excede à quantidade, só a felicíssima invenção do soneto A Cegonha, jóia rara de nossa literatura. Todas as suas poesias encantam, porque surgiram primorosas e belas no pensamento e na forma de expressão. Em Annibal Theophilo desde os primeiros lampejos de sua vocação literária, não há o menor descuido na magia e disposição do verso de molde clássico ou parnasiano. Ele próprio tinha, sempre, a fascinação da técnica e da música do verso. Amava e cultivava, paciente e esmeradamente, o verso – imaginoso, harmônico e sentimental, porquanto compreendia, com D’Annunzio, que o verso é tudo, e, com Alfredo de Musset, que a língua do verso é a “langue immortelle”. Por isso, na Grécia antiga, o verso apareceu antes da prosa. Ligava o conceito da poesia ao do verso, embora não desconhecesse que nem todo verso tem poesia, eflúvio que emana da idealidade, da imaginação e do sentimento, como o perfume da flor. Esse dom era nele verdadeiramente inato. Nasceu poeta, e adquiriu, com o mais fino gosto e senso estético, a invejável arte do versificador exímio, de estilo próprio e inconfundível. Percebe-se em tudo o que Annibal Theophilo produziu que ele conhecia os evolutivos processos da versificação e do estilo, e as diferentes formas dos gêneros literários. Esforçou-se, quanto possível, obstinadamente, apaixonadamente, por imprimir ao verso a máxima perfeição. Esmerilava, sem o mínimo artifício, tudo o que lhe saía do pensamento e de sua pena de ouro. Arquitetado, medido, rítmico e harmonioso, o verso, de origem latina (versus), raramente acabado em muitos outros versejadores, fluía de seu estro, à feição da murmurosa linfa de uma nova Castália, a fonte predileta das Musas e de Apolo, junto ao Parnaso.
Melodista da frase, é seu verso, amiudadamente, modulado com suavidade; não martiriza o ouvido como os de Filinto Elísio; ao inverso, delicia e encanta como Gonçalves Dias, ou Bocage, Guerra Junqueiro, Castro Alves, Machado de Assis, Alberto de Oliveira, Goulart de Andrade, Augusto de Lima, Hermes Fontes e Olavo Bilac. Não tem Annibal Theophilo um verso duro, de impertinentes consoantes inimigas; nem um verso frouxo, de negligentes hiatos, monófono, cacofônico, ruim. Sobressai-lhe no verso a necessária variedade das vozes tônicas sucessivas, o matiz dos sons e das cores, sem torpeza, ou sentido desagradável, abjeto em qualquer verso. Nenhuma dissociação, sequer, de sons e ruídos na aproximação fonética, na conformidade das vogais acentuadas de palavras diferentes na arquitetura sonora do verso; nenhuma aliteração sem intuito de harmonia imitativa ou onomatópica. As harmonias propositadas, as rimas no fim dos versos, são ricas e perfeitas, sem o abuso das licenças, das liberdades poéticas. Nunca ele, Annibal Theophilo, distinto e elegante em tudo, recorreu, insolitamente, a tais artifícios, às diástoles, às apócopes, às ectlipses, às antíteses burladoras, mistificadoras de sons, nas palavras, substituindo-os por sons extravagantes, nas estrofes isométricas e heterométricas. Onde, em que parte, em que verso do livro Rimas (Porto 1911) de Annibal Theophilo, se nos deparam os erros, os vícios, as imperfeições, os equívocos, as dissonâncias, os deslizes de quantiosos e distraídos rimadores? Onde, na mesma obra, as tautofonias de mau gosto, as brumas matinais dos Cisnes, de Salusse, fora da harmonia imitativa? Subindo o Purus, A Bordo, Annibal Theophilo descreve um trecho que parece o quadro de um bom pintor, com impressivas onomatopéias etimológicas, destinado a uma antologia: “É alta noite. Estou desperto e sonho...
Lá fora raiva um temporal medonho. Chove a cântaros. Lívidos coriscos, Ziguezagueando em rutilantes riscos, Cruzam a treva intermitentemente. Trovões ribombam. Rumo do Poente Levamos. Sobre o mudo tombadilho Há uma quietude lúgubre que o brilho Dos fosfóreos relâmpagos aumenta...” A par desse imanente e louvável desiderato da perfeição, na euritmia do verso e da maneira de escrever, foi um dos renovadores de certas formas poéticas no Parnaso brasileiro. Juntamente com Goulart de Andrade e outros, remoçou a Balada e o Vilancete. Formas delicadas e castiças as dos Vilancetes e Vilancicos, de tom menor, graciosas, oriundas, na Idade Média, das Vilas que rodeavam os castelos feudais. Pois bem, tudo isto se encontra, finamente lavrado, nas Rimas, de Annibal Theophilo, o suave lirista, o altivo e denodado cavaleiro capaz de em nosso tempo ainda pelejar por sua dama ou dona e por sua grande Pátria! De sua Balada Livre! Esta é a primeira estrofe: “Enfim. Tornaste à luz do dia, Liberto estás meu coração Do estado que te envilecia Voltas à antiga solidão Tudo acabado. Quem diria Passava a dor de tantos ais Exulta cheio de alegria Que o teu sofrer não volta mais.” Finalmente, o envio (oferta), no estilo renovado, num terno queixume: “Meu coração quebraste a lia A que te guiou sobre sarçais, Venceste. E agora, noite e dia, Persegue-a, abate-a, e sempre mais.” São aprimorados todos os seus Vilancetes, assim: “Viveis eterna a meu lado E estais tão longe daqui Como foi que eu vos perdi...” Ah, se eu pudesse multiplicaria estas evocações. O Tempo voa, o espaço é curto... No soneto Angelus, descrição análoga ao do Anoitecer, de Raimundo Correia, usou Annibal Theophilo a linguagem onírica e decifrou seu próprio destino como a Esfinge do Egito: “Eu, sonhador da Glória e da Alegria, Leio o poema sem luz do meu destino Na imensa mágoa do morrer do dia.” Iludiu-se com a ficção literária, com o sonho, porque sem o sonho, sem a ilusão, sem o ideal não há poesia. Ninguém pode, efetivamente, viver sem a flâmula de um ideal, de uma ilusão, de um sonho, razão mesmo da vida. Nada obstante ser o sonho um fenômeno de inconsciente perceptível durante a noite, entrosado de imagens incoerentes e freudianas que fluem na personalidade de quem, cedendo ao cansaço cotidiano, dorme, simbolizando, no mito de Morfeu, Deus do Sono, Filho do Sonho e da Noite, irmão da Fantasia, Annibal Theophilo, como em geral os autênticos e inspirados poetas, sonhava acordado: “Sonho, mentira colorida... Estrela guia de quem lida Pelos caminhos da Ilusão; Serena Força, és a razão De ser de toda minha vida...” Oprimido pela angústia, numa vida afanosa e enfadonha, teve, um dia, um mau sonho, que nos infunde a sensação lúgubre de Pesadelo: “Tive um sonho esta noite: Era num cemitério A que fui dar descendo uma escabrosa rampa. É o fim de um temporal. O torvo céu se escampa Sinto que sobre mim quase não tenho império. Sem saber como e a quê, sigo certo a uma campa. É um simples monumento, alvo, isolado e sério, Já desvairo a um pavor de terrível mistério... Maquinalmente chego e ergo-lhe a pétrea tampa... Triste, um sinistro som vem de um roufenho sino Distante. Num luar azul, súbito, se abre o pino... Gelado, um frio atroz passa zunindo, e corta... Seco e estrídulo o piar de uma coruja escuto... Olho a cova... no fundo há um corpo envolto em luto... E desperto... Ereis vós, de mãos no peito, morta...” Em sua vida de alegre sonhador, cavalheiresca, houve um momento em que Annibal Theophilo desejou ficar Cego e Surdo: “Força é que cego e surdo viva... Surdo – às tormentas a que se conduz, Cego – ao brilho do bem de que nos priva...” Entretanto, não perdeu a capacidade de amar, de sonhar, de produzir os mais belos versos. Júlio Salusse enalteceu os Cisnes. Os Cisnes, conforme li há dias, num noticiário de Moscou, ainda morrem de amor, num lago azul... Mas foi Annibal Theophilo, nas Rimas, de 1911, o Poeta que imortalizou a Cegonha, nas letras nacionais. Sobre o soneto A Cegonha, na época do seu aparecimento, manifestava-se A Tribuna: “Annibal Theophilo, que tão justo renome ganhou, desde a sua publicação, não só pela força perfeita, magnífica e sóbria em que foi vazado, como pelo assunto seleto e brilhante e pela maravilha sugestão da paisagem que evoca, nos três versos do primeiro quarteto. No gênero, no Brasil, é uma verdadeira miniatura de obra-prima. Daí talvez provenha, com justiça, o seu prestígio em todas as rodas literárias. Com o soneto As Pombas de Raimundo Correia e com aquele outro em que o maravilhoso Bilac, na Via Láctea, nos ensina a ouvir estrelas, A Cegonha de Annibal Theophilo são os versos mais populares do Brasil moderno”. (Asterio de Campos) Além-Fronteiras A Cegonha alcançou grande popularidade. Premiado muitas vezes, era declamado nos salões, nas horas literárias, nas livrarias, nos bares e confeitarias. A imprensa toda do país, homenageando o poeta, reproduzia o soneto com freqüência, que chegou a ser traduzido para o francês e o italiano, por Argemiro Jorge e Tolentino Miraglia. Um Soneto
Em Evolução da Poesia Brasileira, de Agripino Grieco, encontram-se registrados alguns sonetos que marcaram época na literatura brasileira. Entre eles, A Cegonha, de Annibal Theophilo, ao lado dos não menos famosos Ouvir Estrelas, de Olavo Bilac, As Pombas, de Raimundo Corrêa, Lágrimas de Cera, de Raul Machado, Pai João, de Ciro Costa e Cisnes, de Júlio Salusse. Tem razão Boileau, quando afirma que “um sonnet sans défaut vaut Seul um long poème”. Com um único soneto (Monâme a jon secret, la vie a son mystére) Arvers atingiu a imortalidade. Também bastaria a Annibal Theophilo ter escrito A Cegonha para ter assegurado a sua glória nas letras. A beleza do poema atinge o ápice nos versos finais, ajustada ao pensamento de Théophile Gautier que dizia que se o veneno do escorpião está na cauda, o mérito do soneto se encontra o último verso: Ver a Dúvida Humana debruçada / Sobre a angústia infinita de si mesma. Os Cem Mais Belos Sonetos Da Língua Portuguesa “O critério adotado na seleção dos sonetos incluídos nesta antologia foi exclusivamente o artístico. Por essa razão, deixam de nela figurar os nomes de grandes poetas que não foram, no entanto, sonetistas de excepcional merecimento. Da mesma forma, não são nela encontrados muitos sonetos que se tornaram populares sem, contudo, apresentar elevado valor artístico. Entre os melhores sonetos da língua portuguesa, procuramos escolher os cem melhores. Embora, sem pretender ser obra definitiva, esta coletânea é um trabalho honesto que, estamos certos, não decepcionará aos mais exigentes.” Estas são as palavras da introdução de Os Cem Mais Belos Sonetos da Língua Portuguesa, publicação da Revista de Cultura Acaiaca, em maio de 1952, organizada por Celso Brant, Ramiro Lage e Soares Cunha. Dentre os poetas brasileiros foram selecionados Gregório de Matos, com Fuga; Cláudio Manoel da Costa, com Isolamento; Machado de Assis, com À Carolina; Alberto de Oliveira, com Cheiro de Espáduas e Floresta Convulsa; Gonçalves Crespo, com Mater Dolorosa; Arthur Azevedo, com As Estátuas; Luís Guimarães Júnior, com Visita à Casa Paterna; Raimundo Correia, com Poemas da Noite, Saudade, No Outono; Luís Delfino, com o Cadáver da Virgem. De Bilac aparecem Pecador, Ressurreição, Prece; de Augusto dos Anjos, A Meu Pai Morto; de Luís Carlos, Exortação; de Raul de Leoni, Pudor; de Ciro Costa, Pai João; de Humberto de Campos, Envelhecer; de Mário Pederneiras, Suave Caminho; de Ronald de Carvalho, Vida; de Batista Cepellos, A Espera; de Hermes Fontes, Mãe; de Da Costa e Silva, Saudade; Alceu Wamosy participa com Duas Almas; Alphonsus de Guimaraens com Rosas e Sonetos; Cruz e Souza com Enlevo, Sorriso Interior e Monja. Finalmente, encontramos A Cegonha, de Annibal Theophilo, que voltou a merecer destaque. Há, todavia, um reparo a ser feito à transcrição. O nono e décimo versos aparecem com incorreções: Mas eu, que em prol da Luz, do pétreo... Véu do Ser ou do Não Ser, tento a escalada Com o que se sacrifica a métrica, a rima e o pensamento do poeta. Aqui vale lembrar uma crônica de M. Mont., no Correio do Ceará, Os Sonetos Popularíssimos: Quando fui apresentado a Guimarães Passos na Confeitaria Colombo, caí na esparrela de começar a recitar o malfadado Lenço, cuidando de ser agradável ao poeta. O rosto de Guimarães Passos exprimiu um dissabor profundo: – Basta, amigo, este não. Um pouco atrapalhado pedi desculpas, julgando ter-me enganado: – Desculpe. Será de Olavo Bilac? Pensei que este só tivesse Ouvir Estrelas. Emílio de Menezes, presente à cena, explicou tudo: – Você está direito. Mas Lenço é a asa negra deste homem, assim como Ouvir Estrelas é a asa negra de Bilac. Você nunca cite essas duas peças diante deles. – Oh! Exclamei! Então eu não devo aludir às Pombas diante de Raimundo Correia, nem A Cegonha diante de Annibal Theophilo? – Exatamente, confirmou o famigerado satírico. É o mesmo que tocar em chaga viva. E foi assim que eu tomei uma lição de savoir vivre, da qual talvez o meu mestre já se tenha esquecido. A Andorinha Morta
Um longo poema de Annibal Theophilo, A Andorinha Morta, iniciado em maio de 1892, na cidade de Porto Alegre, e terminado em março de 1893, na Bahia, lembra o itinerário do poeta como cadete. Quando de volta ao Rio de Janeiro, em 1898, o crítico José Veríssimo publicou-o nas páginas da Revista Brasileira, sob a sua direção. Annibal Theophilo costumava caricaturar em versos quase todos os seus amigos; e José Veríssimo, que era temido nos meios literários pelas suas críticas rigorosas, sofreu quando aqueles já castigados por ele se valeram em revide do perfil que Annibal Theophilo lhe fizera no Cotó do Queixo. Deus, quando fez esta esfinge, Procedeu com tal desleixo, Que lhe deu por miolo um seixo, E uma gaita por laringe. N.B.: Faltou barro para o queixo. Nasce o Angelus
Annibal, sôfrego e inquieto, percorria célebres várias direções, numa ânsia de estranha visão... seu êxtase impressionava... Subindo uma elevação, na encosta da montanha que orla a curva graciosa da praia, enredando-se às vezes por entre as folhagens da ramaria espessa, ora reclinando-se negligentemente sobre as rochas desnudas, a embeber-se desse aroma sutil com que as auras marinhas confortam a alma dos poetas, transfigurava-se Annibal a cada instante no gozo indefinido de intermináveis sensações. Dentro da baía, a leve viração da tarde, agitando brandamente a superfície serena do mar, formava ondulações suaves, de um azul escuro mesclado, aqui e ali, com o branco alvinitente das espumas. Nas alturas, a linha sinuosa das montanhas que dominam o nosso grande litoral, surgia limpidamente, descrevendo, por entre as mil cores da sombra do crepúsculo, arabescos surpreendentes e miragens as mais encantadoras. O verde escuro da floresta, emoldurando ao fundo da enseada, o quadro pitoresco que tinha sob os olhos, contemplava nessa hora excepcional a ebriedade nosso êxtase comum. Assim descreve o jornalista Antero de Almeida o recanto admirável do Saco de São Francisco, que inspirou ao poeta um dos seus mais belos poemas, Angelus, dedicado a Calixto Cordeiro, que o ilustrou para impressão em cartão postal, com grande sucesso na época. Terminava de forma admirável: Eu, sonhador da Glória e da Alegria, Leio o poema sem luz do meu destino Na imensa mágoa do morrer do dia. Subindo O Purus
Annibal Theophilo escreveu belo poema, em que recorda as viagens no caudaloso rio, em noites tormentosas. Em nove anos conviveu com os mistérios do labirinto amazônico. Ao longo do rio Madeira muitos pontos foram visitados: Canumã, Borba, Itapinimba, Manicoré e Três Casas (onde permaneceu mais tempo), Humaitá, Porto Velho, Jaciparaná, Abunã. Atingiu a Bolívia pelo rio Beni. No rio Negro esteve em Uaupés. No seu itinerário por Coari chegou a Iquitos, no Peru. Subindo o Purus, alcaçou Beruri, Arumã, Boca de Tapaua, Canutama, Lábrea (para onde foi depois do malogro como negociante), Boca do Acre, Sena Madureira, Xapuri e Rio Branco. O poeta tinha preferência pelas lanchas Netuno, Teolinda, Aliança, Manauense, Fênix, Seringueiro, Aymoré. A BORDO (Subindo o Purus) É alta noite. Estou desperto e sonho... Lá fora raiva um temporal medonho. Chove a cântaros. Lívidos coriscos, Ziguezagueando em rutilantes riscos, Cruzam a treva intermitentemente. Trovões ribombam. Rumo do Poente Levamos. Sobre o mundo tombadilho Há uma quietude lúgubre que o brilho Dos fosfóreos relâmpagos aumenta E, em meio da tormenta, O rumor compassado, Lento, surdo, monótono, abafado, Ouço da árvore da hélice rodando. Ah, quem dissera ao ver-me o rosto brando Minha atitude de profunda calma, Que levo dentro d’alma Pesar maior que o temporal bravio Que enturva o espelho deste grande rio; Que sinto em mim sob este céu de chumbo Esta saudade imensa a que sucumbo. Reconhecimento
Alma descrente, alheia à religião, mas alma de poeta, mais de uma vez revelaria a sensibilidade da sua verdade interior. Depois de alguns contatos com padres e freiras, missionários que se dirigiam às regiões mais inóspitas das selvas amazônicas, levando o consolo moral, espiritual e material aos habitantes do imenso inferno verde, o poeta de A Esperança parecia compreender agora o quão preciosas eram aquelas criaturas. Irmãs de Caridade é um soneto delicado que nasceu do coração religioso de um incrédulo: IRMÃS DE CARIDADE Essas que aí vão em longa fila e aos pares, Vestindo azul, mais forte que a saudade, Abandonaram pais, amigos, lares, Festas e risos pela caridade. Firmes, afrontam guerras, pestes, mares, Sem ambições, somente por piedade; Levam consolo a todos os pesares, Têm carinhos de mãe para a orfandade. Sobre as cabeças onde passou breve Um sonho, olhai, como singela e calma, Cada uma passa conduzindo, leve, Uma serena borboleta espalma, Simbolizando, em seu alvor de neve Toda a doçura que lhes mora n’alma. Portugal
Apesar de ter ficado pouco tempo em Portugal, Annibal Theophilo ali viveu dias intensíssimos. As águas verdes do Tejo, a Torre de Belém, os esplendores da arte portuguesa, os aspectos de sua cultura, estilo arquitetural dos Jerônimos, as excentricidades de sua vida mundana, seus homens de letras mais representativos, que lhe tinham dispensado a acolhida cativante. (Amou Júlio Dantas, extasiando-se com a sensibilidade e as galanterias de sua inteligência; Afonso Lopes Vieira declamou-lhe belos versos e ofereceu-lhe o livro mais recente; Albino Forjaz Sampaio fez-se seu camarada). Contemplou ungidamente a estátua de Eça, que merecera o beijo de Bilac. Em maio de 1903, Olavo Bilac, ao descer em Lisboa, comprou flores e foi depositá-las na estátua de Eça de Queiroz. Um guarda civil rondava. Bilac pediu-lhe licença para pular a grade que protegia o monumento, e beijar a estátua. O guarda consentiu, riu-se, e, em seguida, relatou o fato. A notícia se espalhou. Telegramas de Havas contavam o ocorrido. Quando a minha roda da Colombo soube do caso, uma indignação acendeu as almas. Ululava Tomás Lopes: “– O Bilac que me perdoe, mas roubou-me a idéia”. “Isso não se faz. É demais. Annibal Theophilo reclamava a primazia da idéia. Ferviam discussões. À noite, Alfredo de Ambrys recebeu um cabograma de Bilac, comunicando à roda ter beijado por todos os companheiros a estátua de Eça de Queiroz”, comenta o poeta santista Martins Fontes em Boêmia Galante. Annibal Theophilo vai ao Porto para contratar a feitura do seu livro, a ser editado pela Livraria Portuense, Lopes & Cia., Sucessor-Editor, e depois seguiu caminho para a ardente Espanha dos seus sonhos. Portugal foi ainda visitado por Annibal, no seu regresso da Espanha, quando procurou pequeno repouso numa aldeia do interior, enquanto esperava a confecção de seu livro. Logo após, rumava para o Brasil com sua obra encaixotada. Espanha
O sol, a arte, a beleza de Espanha emocionaram o poeta. Andaluzia, Granada, Toledo deslumbraram os olhos de Annibal Theophilo, que “cantou em versos as páginas de ouro da maravilhosa Sevilha”. No bulício das ruas de Madri, passeou a sua elegância de gentil homem da mesma raça – Annibal falava impecavelmente o castelhano – visitando os “salões”, a pintura, as exposições decorativas, as livrarias e pinacotecas. Ah, os gênios de “l’âpre et splendide Espagne”. O Museu do Prado. Rubens, Goya, Velásquez, El Greco. Já saciado o desejo de muitos e muitos anos, acrescenta Péricles Morais, entediado do amor, da arte e das mulheres, como aquele super-civilizado Jacinto, d’A Cidade e as Serras (assim mo referiu em carta escrita por esse tempo, que eu conservo como relíquia), partiu de volta a Portugal. Num longo poema, Impressões de Vigo, Annibal Theophilo “vive o tumulto das emoções recebidas naquela cidade espanhola, onde se perdera de ciúmes por uma versátil estrela da ribalta, que quase o leva à loucura de um duelo”. Chegada Vislumbrei-lhe o vulto apolíneo, no tombadilho do transatlântico que o trouxera, assim que se aproximou o Ambrose. Annibal Theophilo regressava da Europa. A embarcação aportava em Manaus, onde desceria o poeta. Muitos amigos o esperavam e Péricles Morais prossegue: Abraçamo-nos e depois no hotel, ouvindo-lhe as impressões da viagem, as belezas e insuficiências do velho Portugal passaram por meus olhos, através do fagulhamento da sua narrativa colorida de boutade. Falava sem cessar, falava desabridamente, e as suas palavras se despenhavam, em torrentes, como se fossem as águas turbilhonantes de uma cascata. Comicidade Irresistível De repente travando-lhe a vertigem da imaginativa, a intervenção de um trocadilho, o espocar de uma charge em torno da pronúncia lusa, que por efeito de extraordinário mimetismo o poeta reproduzia, contraindo os músculos do rosto, com esgares de comicidade irresistível. Annibal Theophilo distraía os amigos, contando as novidades de sua viagem. A alegria e a graça do poeta diante de seus amigos sempre foi comentada e é sempre citada nas Confidências Literárias. O Livro Encaixotado Annibal Theophilo trouxera o seu livro da Europa, todo encaixotado e, já em Manaus, no seu regresso, com a ajuda de Péricles Morais, resolvera fazer uma rigorosa revisão, porque, dizia o amazonense, “o volume se ressentia de injustificáveis defeitos técnicos, e estava eriçado de descabeladas anomalias gráficas”. O resultado foi que passaram uma noite inteira consertando o milheiro dos absurdos ali impressos, com vírgulas e crases absurdas, aqui e além-mar. ...li os poemas de Rimas, impregnados de estesia e sensibilidade, mas não me conformava com os descuidos dos editores, afirmava mais tarde o biógrafo de Coelho Neto. Esta Beleza!... Esta Perfeição!...
Certa feita, o jovem Gustavo Vasconcelos aproximou-se de Annibal Theophilo, num bar da Glória, onde o poeta em um canto de mesa bebia o seu vinho. Aos primeiros passos do amigo, indicou-lhe uma cadeira, pedindo-lhe silêncio. Pouco depois mostrava-lhe os primeiros versos de Devotamento, declamados na voz magnífica. Gustavo Vasconcelos fora colega dos filhos do poeta no Ginásio Pio Americano e tinha por ele sincera admiração, sabendo muitos dos seus versos de cor. Depois de muitos anos, ouvimo-lo recitar a peça com viva emoção. E acrescentava: “– Esta Beleza! Esta Perfeição!” DEVOTAMENTO
Jamais um desgraçado incompreendido No conceito dos outros hei de ser; Que não passo de louco ou de fingido O meu mais íntimo prefere crer, Porque, para melhor te merecer, Me afasto sem pesar de impuros laços, Evito os ébrios, fujo dos devassos, Com disfarçado, ingênito rancor, E, todo, guardo-me para os teus braços, Guardo-me todo para o teu amor. Porém, que importa que eu não seja crido... Que este divino modo de querer Não seja pelos homens entendido E motejos eu tenha de sofrer? Não! Nunca mais eles verão descer. Meus abraços buscando outros abraços, Minha mente deixar seus régios paços, Nem minh’alma seu rútilo esplendor, Porque me guardo só para os teus braços, Guardo-me todo para o teu amor! A Dor Do Poeta
Annibal Theophilo parecia querer espantar todo aquele sentimento de culpa em relação à família, e não foram poucas às vezes em que procurou convencer a esposa a recompor o lar. Teria o poeta permanecido durante tanto tempo na Amazônia – mais do que os seus familiares imaginavam – por questão de dinheiro? Seria o seu próprio espírito desassossegado que fora atraído por aquelas pragas? Poderia um homem, amante das coisas belas da vida, de tão puros sentimentos, abandonar a esposa e três filhos tão pequenos? Quem poderia dar testemunho válido seria o seu confidente, Péricles Morais – e o faz no seu trabalho sobre o poeta. Da mesma forma, pessoalmente, fez confidências à filha de Annibal, muitos anos depois da “odisséia amazônica”. Annibal, em 1914, já sem esperanças, transbordou seus sentimentos diante daquela que não o perdoava. Num lance bem ao seu feitio, como se fora Cirano, implorou apaixonadamente, numa emoção incontida: – De coração ajoelhado eu te peço compreensão para o meu anseio... perdoa!... perdoa!... A frase enfática, sincera, sofrida, parecia o adeus do poeta à sua curta vida, como se fosse um gesto premonitório. Mas, como presságio sinistro, eu tinha para mim que o destino fazia ironias, divertindo-se com a sua vítima, afirmou Péricles Morais. São dessa época estes versos tristes: SEMPER
Às vezes fico cismado Que será feito de ti? Entristeço, e só me abrando Crendo que não te perdi. Caem pesados letargos Nest’alma cheia de ti, E passo dias amargos Se penso que te perdi Deus é a suprema bontade... (E separou-me de ti!) Consolo a minha saudade Crendo que não te perdi. Ah! Como dói frio e forte Sentir-me longe de ti! Cem vezes prefiro a morte A lembrar que te perdi... Desânimo E Glória
Parecia que o espírito aventureiro de Annibal Theophilo perdera o ímpeto. Os longos anos que o poeta passara afastado do lar não favoreceram um entendimento imediato com a esposa. Mas o poeta sempre insistia, visitando sua filha, diariamente. Procurava, com seus segredos e promessas, sussurrados aos ouvidos da menina, obter a reconciliação tão ansiada, mas cada vez mais remota. O poeta confessava a sua culpa. Improviso
“O desventurado poeta, Annibal Theophilo que jantara conosco, escreveu este improviso a pedido de minha filha Marieta, assinando-o com a alcunha que lhe davam os meus pequenos.” (Gabi Coelho Neto) Eu sou matuto danado Ando de chapéu de couro Uso pragata nos péis E quando fico isquentado Azuno qui nem bizouro Quero bem, sou ciumento, Sou bichão na pontaria Uso revórvi na cinta Falo cum ativimento E num ingeito arrelia Já matei 3 libizome, 4 véia fiticêra, 9 arma du outro mundo. Fiquei cum fama di homi, E num tenho êra nem bêra. Sinha Zita num me diga Mais pra eu li faze trova Qui eu fico todo fanhoso E via indo di barriga Pra num leva uma sova. Xico Lambeta Pólos Extremos De espírito nobre, Annibal Theophilo impunha-se pela delicadeza, pela inteligência, pela graça das suas palestras com os amigos. Quando falava sério transmudava-se num trovador medieval. Declamava sonetos, baladas, vilancetes, rondós, inspirados por ...visionárias Cismas: torneios, justas, correrias, Serenatas, duelos e sombrias Batalhas à arma branca, tumultuárias... Quando brincava, exibia a sua vivacidade humorística, tal como nas “ônzimas bárbaras”, mas sempre sem perversidade ou ofensa. Nesse aspecto da sua obra granjeou a simpatia do mestre da ironia e das chufas, Emílio de Menezes, que divulgava com admiração as suas sátiras. Bastos Tigre E O “Chico Tetéia” (Ônzimas Bárbaras) Do poeta, dizia Bastos Tigre: Annibal Theophilo era um belo tipo de homem, forte, saudável, transbordante de alegria na roda dos amigos. Poeta delicadíssimo, compôs belos sonetos em forma camoniana e poemas no molde antigo, rondós, rondonéis, vilancetes, etc., que Goulart de Andrade pusera em moda. Engraçadíssimo entre os amigos íntimos, Annibal, de vez em quando, surgia na Colombo com uma “ônzima”, modelo de sua invenção para substituir a décima clássica. Annibal era impagável naqueles disparates e maluquices rimados. Eis duas amostras de “ônzimas” de Annibal, que chegou a compor uma centena delas, algumas de sabor à pimenta malagueta. De Chico Tetéia, pseudônimo de Annibal, reproduzimos algumas de suas “Ônzimas Bárbaras”, sendo de notar a simetria intencional das rimas. Silêncio Martins Fontes, autor de “Rosicler”, “Granada”, “Escarlate”, “Volúpia”, era poeta à altura de Bilac, Emílio de Menezes, Leal de Souza, Goulart de Andrade, Heitor Lima, Ciro Costa, Bastos Tigre, Olegário Mariano, Annibal Theophilo, seus amigos e confrades assíduos. “Abelhas”, como ele. Ele é que conta uma passagem com Annibal Theophilo que merece ser transcrita como exemplo da ternura boêmia dos dois amigos e do estilo retórico e pitoresco do escritor: Caminhávamos distraídos, encantados com o esplendor do dia, quando, súbito, vimos uma velha mangueira, verde, em agerasia pletórica, que através do cerne, da frescura do caule, deixava transudar a seiva, esguichando, em filetes, em irisações contínuas. Era maravilhoso! Esses jatos de seiva exsudantes do tronco, em repuxos mínimos, feridos pelos raios do sol, filtrados pelas folhagens, tamizavam-se em gotículas fúlgidas, em piscas de ouro vivo, e bailavam no ar como arco-íris minúsculos. Deslumbrados, paramos. E ia eu explodir em adjetivos, quando Annibal Theophilo transfigurado, pálido de espanto, criança genial, me sussurrou em palavras: “Silêncio! A árvore sonha. Chora sonhando!...” Annibal E O Mar Annibal Theophilo tinha a volúpia do perigo e o demonstrou em várias ocasiões, comentava o seu grande amigo Alcides Maya. Lá na ponta da praia de Copacabana, onde é hoje o Forte, no posto 6, havia a Igrejinha. Copacabana ou Sacopenapã, na língua quíchua dos antigos peruanos, “lugar luminoso”, lembrava a península de igual nome, no lago Titicaca, nome e imagem de Santa trazidos por negociantes que para aqui vieram. Ali foi erguida uma capela, em cima das pedras, para acolher a figura milagrosa. Em 1832 e 1858, mereceu os cuidados oficiais com reformas, até que, em 1918, a famosa “Igrejinha” cederia lugar à atual fortaleza. Um grupo de amigos, entre os quais Annibal, por ali passava em dia de céu claro, mas de mar bravio, de violenta ressaca. Um dos companheiros duvidou que houvesse um homem valente capaz de enfrentar o mar revolto. Para Annibal aquilo pareceu um desafio. E eis que, de um salto, arrojou-se às ondas sem medir conseqüências. É que nele Dom Quixote era alguma coisa mais que um destruidor de moinhos; era a saudade errante de um tempo heróico que se foi. Esse medievalismo de Annibal se revela claro em muitas de suas formas de composição, em seu estilo, em seu amor, disse José Oiticica. Foi uma aventura doida. Atleta, exímio nadador, conseguiu vencer a força das águas, chegando a pensar, porém, como mais tarde confessou, que não conseguiria regressar à praia. Nadou mais de 60 minutos, preocupando seriamente os amigos. Mas ainda encontrou ânimo para uma pilhéria, ao afirmar que contava também com a proteção de Netuno. Conceito De Felicidade Nas reuniões dos intelectuais da época, de vez em quando era comum a idéia de desenvolver um tema transcendente: a vida, o amor, a natureza, a poesia, a dor, a felicidade, etc. Muitos fantasiavam ou evocavam pensamentos e poemas famosos. Outros encaravam o assunto com espírito boêmio. Annibal Theophilo, apesar de ser muito satírico, não raro demonstrava as suas preocupações graves com a vida. Falando de felicidade, por exemplo, revelou estranhamente, ele um temperamento agitado de herói, que o seu ideal não era senão a tranqüilidade e a calma de espírito. No soneto Calmo, declarava: Ver-me-eis tranqüilo, embora o esforço prostre De vez meu ser; ao mal que não deixa, Indiferente, não, que o não consigo. Porém tudo farei porque não mostre Sombra meu gesto nem meu lábio queixa Que nos possa pesar como um castigo. Alma Sedenta
Martins Fontes é, talvez, o maior cronista da vida literária do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas do século. Deve a cidade ao autor de “Terras da Fantasia” páginas de grande beleza. Annibal Theophilo conheceu Martins Fontes no grupo de Olavo Bilac. Consagrou-lhe sincera amizade e admiração. Dedicou-lhe o poema ALMA SEDENTA no livro Rimas. Mas a mesma amizade e admiração lhe tributava o poeta santista: Annibal era belo, era forte, guapíssimo. Seu espírito se temperou no aço do heroísmo, à chama da pureza. Imaginai a Idade-Média, recordai a ardente Espanha, evocai Portugal, relembrai um destes heróis da nossa raça: Álvaro Gonçalves de Pereira ou Estevam Vasques Pimentel... Assim era ele, filho subjetivo de Camões. Assim era ele... homem fora do seu tempo e da sua pátria, templário do Ideal, servidor da Beleza! Certa noite, ao luar, vi no seu feltro flutuar uma pluma, seu traje se transformou nos meus olhos surpresos, um gabão de veludo e seda de herói de Velásquez transparecia através da capa solta, folgando ao vento, e, em vez de bengala de junco da Índia, que eu lhe ofertara, à vinda de França, pareceu-me entrever um luzier de florete, florido nos copos por um abridor toledano, pendente, à direita, soerguendo o manto... Recitava. Desfolhava rimas em louvor da bravura, do brio e da galantaria, mestre impecável da gaia ciência, do raro trovar... Este era o homem!... De uma saudade eterna de outras eras. Olegário Mariano Declama Outro grande admirador de Annibal Theophilo foi Olegário Mariano. Meses antes de sua morte, visitamo-lo em seu escritório. Ali ocupado com o serviço, atendendo a um e a outro, e já com o estado de saúde comprometido, encontrou um momento de calma para recitar, emocionado, os poemas de Annibal “A Cegonha” e “Palavras de um Forte”. Ele próprio estranhou que, depois de tantos anos, ainda tivesse tão vivos na memória os versos do amigo desaparecido em 1915. Olegário Mariano era ainda muito moço quando, iniciando-se na vida literária do Rio de Janeiro, conheceu Annibal. Apesar da diferença de idade, Annibal Theophilo logo lhe dedicou carinhosa amizade, nascida da admiração pelo talento do poeta de “As Cigarras”. Fui dos muitos jovens, na época, que se deixaram impressionar pela personalidade marcante do filósofo de “A Cegonha”, disse-nos na entrevista. Formosa Dama Em “Amor na Poesia Brasileira”, Olegário Mariano apresenta as poesias de sua preferência sobre o tema imortal. Uma delas é “Formosa Dama” de Annibal Theophilo, que aqui reproduzimos, de nítido sabor camoniano. Enfermo
Annibal Theophilo, juntamente com o seu primo, José Tarquínio, regressou a Barbacena procurando recuperar a saúde, pois ambos ainda sofriam as seqüelas do impaludismo. Ali, no ano de 1914, o poeta recebeu a visita de sua esposa, dona Liberalina, dele separada há muitos anos. Annibal ficou feliz em rever e ter novamente ao seu lado aquela que fora o amor da sua mocidade, a mãe dedicada de seus três filhos, por quem continuava a nutrir respeito e amizade. Dona Sinhá, em companhia do filho Vituca, foi incansável nos cuidados ao marido, que, depois de dois meses, voltava à capital, restabelecido. É dessa época o seu conhecido soneto: ENFERMO Abatido após longo sofrimento, Eis-me no leito, lívido sentado. Vai alta e fria a noite. No escampado Casam lamúrias cães sem dono e o vento. Bem longe entanto está meu pensamento: Nela, que se adivinha meu estado, Sabendo-se meu único cuidado, Vinha num céu mudar-me este tormento. Basta, meu coração, contém teu grito! Pois há inda ilusão que em ti se aceite, Vivendo a tanta desventura afeito? Talvez, enquanto velas, pobre aflito, Nela pensando em tão medonha noite, Seja noite de lua no seu peito. Parecia a todos que o gesto de nobreza da esposa do poeta provocaria a reconciliação. Mas não houve tempo. Meses depois Annibal Theophilo iria morrer sacrificado numa tragédia brutal. |
Este é o manuscrito do poema de Annibal Theophilo, dedicado à sua filha Elisa, que completara
um ano de vida, em 6 de março de 1903. Calixto Cordeiro, um dos grandes caricaturistas do Brasil, ilustrou alguns poemas de Annibal Theophilo. Dentre eles o famoso soneto A Cegonha. A Revista Fon Fon publicou o trabalho em sua capa.
Manuscrito do célebre soneto A Cegonha, que Annibal Theophilo autografou em 20 de maio de 1903, para o “irmão de letras”, Antero de Almeida.
Depois de tantos anos de esquecimento, o nome do poeta Annibal Theophilo foi lembrado nos Arquivos Implacáveis, de João Condé. (Revista “O Cruzeiro, de 15 de setembro de 1956).
LA CIGOGNE
Argemiro Jorge Qui pourra contempler, l’âme douce et joyeuse, La cigogne qui va méditer tristement Aux bords d’un lac tout bleu, humaine et soucieuse, Quand la nuit fait pâlir les rougeurs du couchant? Madame, en la voyant, vous faites la rêveuse... Peut-être vous pensez que d’un comte, vaillant Seigneur d’un beau manoir, blonde fée envieuse A fait ce triste oiseau aux extases d’amant. Ah. Mais moi, que le Vrai, sans jamais être las, - Hardi comme um patient hargneux, têtu limas - Tâche d’escalader, en des efforts extremes, En la voyant jeter vers le lac bleu, serein, Son regard, je crois voir l’éternel Doute Humain Penché sur l’infinie angoisse de soi-même. LA CICOGNA
Tolentino Miraglia La solitaria, placida cicogna, Immersa in un pensiero ignoto e vago, Mentre tramonta, sopra azzurro lago, Guardare con tristezza vi abbisogna. Vedendola, Signora, forse sogna Che il malo conte d’un palagio mago Bianca fata, perversa, per suo svago, Mutò nell’erodina (sic) che trasogna Ma io che, per la luce, il velo denso Dell’essere o non esser, diradando, Tento tenacemente, il duro accesso, Al vederla mirarsi in acque, penso Vedere il dubbio umano meditando Sur l’angustia infinita di se stesso. Andorinha Morta foi publicado na Revista Brasileira, dirigida pelo crítico José Veríssimo. O poema foi dedicado “à memória de I. Belfort V. Duarte”, datado de 1892, Porto Alegre. Reproduzimos, nesta página, uma prova, com as modificações efetuadas pelo poeta. O livro Rimas, publicado mais tarde em Portugal, não inclui os belos versos de Andorinha Morta.
Escritores e poetas reuniram-se no aprazível recanto do Saco de São Francisco, em Niterói. À tarde no crepúsculo, Annibal Theophilo produziu o belo soneto Angelus. Ofereceu-nos o exemplar, o Coronel Adyr Guimarães, retirando-o da estante de sua rica biblioteca.
A bordo do R.M.S. Hildebrand Annibal Theophilo escreveu vários poemas. Aqui se reproduzem alguns manuscritos, com a chancela do navio inglês impressa.
Ilustração de autoria de J. Carlos, dedicada “ao querido Annibal” e publicada na Revista Careta, do poema Impressões de Vigo. Revista Careta, nº 239, de 28/12/1912.
MEA MAXIMA CULPA
Senhora, eis-me de rojo Ás vossas plantas, súplice. Dizei Que apesar do desprezo e justo nojo Que mereço, bem sei, Perdoais quanto vim De dizer-vos de insulto, Que ao máximo esplendor vos ergueu no meu culto, Quando tornei, sereno, a mim. Dissipai o desgosto. O lodo que atirei por vos manchar, Caiu-me por castigo sobre o rosto, Não vos pôde alcançar, Desvairada a razão, Aceso em fúria louca, Não sei que estranho mal veio ditar-me à boca... Não me saiu do coração. ÔNZIMA XXI
Casou Francisco da Vara Com Dona Júlia Quimera (Isto foi na primavera Tempo em que a musa não pára) Meses depois, coisa rara Coisa que nunca se vira, E até parece mentira! Brincavam a toda hora, Dentro de uma sala escura, A ponto de ouvir-se fora: “- Seu Chico, você me fura!” ÔNZIMA XII Ontem, Quintino do Valle, Que tem manchinhas na pele, Foi tomar um gingerele Em casa de Zé Timbale. Não quero que se propale, Espero que se sigile: Chegou o francês D’Arville, Casado com Dona Tulle Com quem o Quintino bole... E eis que, antes do último gole, Lhe parte a cara com o bule. No falar das “Odaliscas do Largo da Segunda-Feira” ÔNZIMA III Ai! Que calor, que massacre! De nada me serve o lecre. Receio que me embonecre Este sol que pinga a lacre. Vou já tomar um fiacre, Para que o mundo se enxicre... Mas, no bolso nem um nicre... Sinto desejo de focre, Intenção de criar mucre, Vontade de comer ocre, Misturado com açucre. ÔNZIMA V Quando a Brasília Chalaça, Casada com o Chico D’Eça, Quer pespegar-lhe uma peça Pensam que ela o ameaça? Qual nada! Sai pela praça, Compra um metro de lingüiça E é o que basta para a missa: Chega, e prega-lhe uma coça! Então ele vai-lhe à fuça, E, às vezes, a coisa engrossa Que é um Simão de Carapuça! ALMA SEDENTA A Martins Fontes A pino o sol sobre a floresta. Pesada, a calma incita à sesta. Ciciantes soam das cigarras As fanfarras. Que solidão para este anseio Que me constringe a arca do seio E imerge em funda nostalgia A energia! Tomo o fuzil por distrair-me E em direção à terra firme Sigo. Cochicham gaturamos Pelos ramos. Ruídos na mata escuto a espaços; E, atentos, vista e ouvido, os passos Por ver se um pássaro diviso, Já suavizo... É uma gazela que se afasta... E, ora em aberta clara e vasta, Ora em cerrado flóreo e lindo Vou seguindo. Pedem aqui cipós em tiras; Fazem ali num tronco espiras; No solo, entrelaçando as dobras, Fingem cobras Por temporais rudes batido, Todo em destroços, abatido, De um cedro antigo o resto informe Além dorme. Sobre os nectários de vermelhas Flores silvestres as abelhas Zumbem pousando, vão pairando Ou rondando. Entro num declive extenso, estreito, Barrento e liso que, direito Por um bambual fresco e sombrio, Desce ao rio. Chego. E, sentado sobre a relva, Da oposta margem olho a selva Na tona quieta refletida Invertida. E a sede d’água, por leni-la, Tomo nas mãos linfa tranqüila, Que em vão lenir na mente sonho A do sonho... FORMOSA DAMA Formosa dama, quando o olhar levanto E o vosso olhar dulcíssimo diviso, Penso que um anjo sois do Paraíso, Vindo por me vencer por seu encanto. Tratais-me com tal vida e tal quebranto Mostrando tal ventura no sorriso, Que abandonado temo ser do siso Por me quererdes qual vos quero tanto. Mas dura pouco a minha interna aurora, Porque meu coração, se extasiado, Diante de Vossa perfeição demora, Vendo-me tão da terra, ao vosso lado, Sendo vós tão do céu, temo, Senhora, Que em mim pusésseis mal vosso cuidado. |
“Inquilinar O Buxo”
Manaus, 9 de dezembro de 1905.
Meu caro Fagundes.
Aqui vegeto eu à sombra dos Nerys, tartarugamente.
Soube pelo Weaver que estás no 2º Regimento de Infantaria.
Que fizeste de mim?!... Que fizeste de ti?!... Escrevi-te um cartão postal, há coisa de dois meses pedindo-te me enviasses com máxima urgência os versos que deixei contigo e dos quais não tenho cópia. Enderecei o cartão para Laranjeiras, 2, onde sonho que devas estar ainda no mesmo superior convívio do Alcides e do Tigre.
Até hoje, nenê...
O Gregório já está enforcado?...
O Alcides?…
Abraça-os com força reiúna e gaúcha.
Previno-te e a eles que espero enricar nababescamente por estes 200 anos.
Gozo de uma saúde de ferro para grande espanto dos amazonenses.
Creio que só ficarei encaixotado no Mocó por desastre ou espontaneamente por bebedorias.
A grande porção de roupas que trouxe daí não me chega mais e, neste andar, acabo Emílio de Menezes ou Tatu Bola.
Minha consolação aqui é a caça.
Já sou celebridade venatória.
Exerço o cargo de oficial interino do Registro Geral de Hipotecas e Protestos de Letras.
Já vê que sou troço em penca, porém a coisa mal dá para “inquilinar o buxo”.
Abraça e beija o Goulart de Andrade. Ele que dê um grande saudar ao Alberto de Oliveira pelo novo livro.
Espalha por aí que sou um semi-deus – poeta aqui, coisa que aliás não me desvence. Tenho já grande bagagem poética.
Peço-te que me envies com a mais rigorosa brevidade os versos. Sobrescrita-me para redação do “Amazonas”.
O Thaumaturgo Vaz me prevenirá quando cheguem aqui.
Estou escrevendo a biografia do nosso João Lopes Ribeiro, aqui morto em fevereiro deste ano. Escreve tu a de Bolívar. Foste amigo dele, mais tempo que eu. Será isso uma grande justiça e gratidão dos nossos corações.
Quando virás suar um pouquinho por aqui?
Adeus – aceita um grande abraço do
Annibal Theophilo
Ri, Coração
J.Lopes Ribeiro é um nome que aparece ao lado de Annibal Theophilo, durante muitos anos, desde moços; pelo ano de 1894, no Ceará, como cadetes, ambos se irmanavam nos seus espíritos e na sua sensibilidade poética. Lopes Ribeiro, Annibal Theophilo, Marcelino Pita da Rocha Lima vieram passar suas férias de fim de ano, na cidade de Salvador, onde residiam as famílias Rocha Lima e Santos Silva. O cadete Lopes Ribeiro veio como convidado. Mais tarde, Annibal estava na Amazônia e lembra a figura do amigo, em carta endereçada a outro grande amigo no Rio de Janeiro – Marcolino Fagundes, com os dizeres seguintes: “Estou escrevendo a biografia do nosso João Lopes Ribeiro, aqui morto em fevereiro deste ano (1905)”. No livro de Annibal Theophilo, “Rimas”, o poema “Ri, Coração”, foi dedicado ao companheiro J. Lopes Ribeiro, que já lhe havia dedicado o “Saudoso”, por nós descoberto na revista literária “Iracema”, de 15 de agosto de 1895, ora transcrito aqui:
SAUDOSO
A Annibal Theophilo
“A estrela é nossa irmã no sentimento:
Ri nosso riso e chora nosso pranto”.
Triste e cheio de amor olhava a Altura
Onde são de ouro o pranto e as alegrias:
Gotas de luz que a noite em vão procura
Cobrir com a treva das roupagens frias
E sob o agir da Dulcinéa – amargura,
O tempo eu recordava em que sorrias
E o teu sorriso minha vida escura
Povoava de estrelas erradias
Que, se brilhavam como as nebulosas,
Como os sorrisos se extinguiram breve;
E esta lembrança inda minh’alma junca
De nuvens densas cor de sangue e rosas
Pois que da ausência na amplidão de neve
Cintila o amor que não resfria nunca.
RI, CORAÇÃO
A J. Lopes Ribeiro
Nunca te humilhes, coração. Espanca
Essa tristeza lânguida, que data
Desde que viste, fugitiva e branca,
Essa fria mulher que te arrebata.
Não chores, coração, depressa estanca
Esse pranto que amargo se desata.
O teu valor, que faz, que não arranca
De tuas fibras esse amor que mata?...
Levanta-te viril, mostra que és forte,
Que podes, mesmo nos humbrais da morte,
Rindo, ostentar uma frieza de aço
Ri, que esta vida é uma comédia insana
Consiste em rir toda a ventura humana
“Ri, coração, tristíssimo palhaço...”
Só Sei Fazer Versos Simples
Rio, 28 de agosto de 1913.
Minha boa Comadrinha
Saúde e Paz à Senhora e ao Henrique.
Não tenham cuidado nos filhos que vão bem.
Fui duas vezes ver como iam. A primeira vez encontrei o João e o Paulo no portão, festejaram-se ruidosamente com o costumado: “Olá, Chico Lambeta”. Perguntei por todos à velha Ba. Não entrei porque o Sílvio não estava e a Sra. dele havia saído com as pequeninas. A segunda vez entrei e fiz uma visita rápida sabendo que todos continuavam sem novidades.
De então para cá tenho andado atarefadíssimo, encrencado a escrever uma conferência que será lida no Jornal do Comércio, pois o Alcides, sem consultar-me ou avisar-me sequer, incluiu-me na lista dos conferencistas deste ano. Ele não se convence de que eu só sei fazer versos simples e quer à força colocar-me em parédrica evidência. Que teimoso!
Espero, ou melhor, esperamos todos que a Comadrinha se arme da maior paciência para que o Netto complete o curativo que vai fazer. Esconda bem as saudades da pátria, dos filhos e dos amigos, para não precipitar a voltar sem saúde perfeita. Ninguém lhe perdoaria se o trouxesse doente ainda para o convívio dos que muito o querem e muito o admiram.
Muita calma e aguce a curiosidade ante as velhas maravilhas de que este velho mundo está cheio, para contar-nos as suas impressões, na volta, com o brilho e a graça que tanto a distinguem.
Um grande abraço ao Netto e aqui fica ao inteiro dispor o amigo respeitador, muito grato e firme
Annibal Theophilo
Manaus, 9 de dezembro de 1905.
Meu caro Fagundes.
Aqui vegeto eu à sombra dos Nerys, tartarugamente.
Soube pelo Weaver que estás no 2º Regimento de Infantaria.
Que fizeste de mim?!... Que fizeste de ti?!... Escrevi-te um cartão postal, há coisa de dois meses pedindo-te me enviasses com máxima urgência os versos que deixei contigo e dos quais não tenho cópia. Enderecei o cartão para Laranjeiras, 2, onde sonho que devas estar ainda no mesmo superior convívio do Alcides e do Tigre.
Até hoje, nenê...
O Gregório já está enforcado?...
O Alcides?…
Abraça-os com força reiúna e gaúcha.
Previno-te e a eles que espero enricar nababescamente por estes 200 anos.
Gozo de uma saúde de ferro para grande espanto dos amazonenses.
Creio que só ficarei encaixotado no Mocó por desastre ou espontaneamente por bebedorias.
A grande porção de roupas que trouxe daí não me chega mais e, neste andar, acabo Emílio de Menezes ou Tatu Bola.
Minha consolação aqui é a caça.
Já sou celebridade venatória.
Exerço o cargo de oficial interino do Registro Geral de Hipotecas e Protestos de Letras.
Já vê que sou troço em penca, porém a coisa mal dá para “inquilinar o buxo”.
Abraça e beija o Goulart de Andrade. Ele que dê um grande saudar ao Alberto de Oliveira pelo novo livro.
Espalha por aí que sou um semi-deus – poeta aqui, coisa que aliás não me desvence. Tenho já grande bagagem poética.
Peço-te que me envies com a mais rigorosa brevidade os versos. Sobrescrita-me para redação do “Amazonas”.
O Thaumaturgo Vaz me prevenirá quando cheguem aqui.
Estou escrevendo a biografia do nosso João Lopes Ribeiro, aqui morto em fevereiro deste ano. Escreve tu a de Bolívar. Foste amigo dele, mais tempo que eu. Será isso uma grande justiça e gratidão dos nossos corações.
Quando virás suar um pouquinho por aqui?
Adeus – aceita um grande abraço do
Annibal Theophilo
Ri, Coração
J.Lopes Ribeiro é um nome que aparece ao lado de Annibal Theophilo, durante muitos anos, desde moços; pelo ano de 1894, no Ceará, como cadetes, ambos se irmanavam nos seus espíritos e na sua sensibilidade poética. Lopes Ribeiro, Annibal Theophilo, Marcelino Pita da Rocha Lima vieram passar suas férias de fim de ano, na cidade de Salvador, onde residiam as famílias Rocha Lima e Santos Silva. O cadete Lopes Ribeiro veio como convidado. Mais tarde, Annibal estava na Amazônia e lembra a figura do amigo, em carta endereçada a outro grande amigo no Rio de Janeiro – Marcolino Fagundes, com os dizeres seguintes: “Estou escrevendo a biografia do nosso João Lopes Ribeiro, aqui morto em fevereiro deste ano (1905)”. No livro de Annibal Theophilo, “Rimas”, o poema “Ri, Coração”, foi dedicado ao companheiro J. Lopes Ribeiro, que já lhe havia dedicado o “Saudoso”, por nós descoberto na revista literária “Iracema”, de 15 de agosto de 1895, ora transcrito aqui:
SAUDOSO
A Annibal Theophilo
“A estrela é nossa irmã no sentimento:
Ri nosso riso e chora nosso pranto”.
Triste e cheio de amor olhava a Altura
Onde são de ouro o pranto e as alegrias:
Gotas de luz que a noite em vão procura
Cobrir com a treva das roupagens frias
E sob o agir da Dulcinéa – amargura,
O tempo eu recordava em que sorrias
E o teu sorriso minha vida escura
Povoava de estrelas erradias
Que, se brilhavam como as nebulosas,
Como os sorrisos se extinguiram breve;
E esta lembrança inda minh’alma junca
De nuvens densas cor de sangue e rosas
Pois que da ausência na amplidão de neve
Cintila o amor que não resfria nunca.
RI, CORAÇÃO
A J. Lopes Ribeiro
Nunca te humilhes, coração. Espanca
Essa tristeza lânguida, que data
Desde que viste, fugitiva e branca,
Essa fria mulher que te arrebata.
Não chores, coração, depressa estanca
Esse pranto que amargo se desata.
O teu valor, que faz, que não arranca
De tuas fibras esse amor que mata?...
Levanta-te viril, mostra que és forte,
Que podes, mesmo nos humbrais da morte,
Rindo, ostentar uma frieza de aço
Ri, que esta vida é uma comédia insana
Consiste em rir toda a ventura humana
“Ri, coração, tristíssimo palhaço...”
Só Sei Fazer Versos Simples
Rio, 28 de agosto de 1913.
Minha boa Comadrinha
Saúde e Paz à Senhora e ao Henrique.
Não tenham cuidado nos filhos que vão bem.
Fui duas vezes ver como iam. A primeira vez encontrei o João e o Paulo no portão, festejaram-se ruidosamente com o costumado: “Olá, Chico Lambeta”. Perguntei por todos à velha Ba. Não entrei porque o Sílvio não estava e a Sra. dele havia saído com as pequeninas. A segunda vez entrei e fiz uma visita rápida sabendo que todos continuavam sem novidades.
De então para cá tenho andado atarefadíssimo, encrencado a escrever uma conferência que será lida no Jornal do Comércio, pois o Alcides, sem consultar-me ou avisar-me sequer, incluiu-me na lista dos conferencistas deste ano. Ele não se convence de que eu só sei fazer versos simples e quer à força colocar-me em parédrica evidência. Que teimoso!
Espero, ou melhor, esperamos todos que a Comadrinha se arme da maior paciência para que o Netto complete o curativo que vai fazer. Esconda bem as saudades da pátria, dos filhos e dos amigos, para não precipitar a voltar sem saúde perfeita. Ninguém lhe perdoaria se o trouxesse doente ainda para o convívio dos que muito o querem e muito o admiram.
Muita calma e aguce a curiosidade ante as velhas maravilhas de que este velho mundo está cheio, para contar-nos as suas impressões, na volta, com o brilho e a graça que tanto a distinguem.
Um grande abraço ao Netto e aqui fica ao inteiro dispor o amigo respeitador, muito grato e firme
Annibal Theophilo
Manuscrito da carta enviada à Dona Gabi, esposa de Coelho Neto, compadre de Annibal Theophilo.
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